São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Bendita crise

ANTON KARL BIEDERMANN

A crise da União, Estados e municípios é bem-vinda, pois desnuda o Estado brasileiro
A morte da inflação deixou às lágrimas viúvas inconsoláveis: os bancos, que obtinham ganhos inflacionários significativos, e os governos federal, estadual e municipal.
A cortina de fumaça gerada pela inflação ajudou, por muito tempo, a encobrir o verdadeiro tamanho do Estado brasileiro. Antes do Plano Real, o governo federal engordava suas receitas com a arrecadação do imposto inflacionário que, segundo as estimativas disponíveis, chegava a US$ 15 bilhões ao ano.
Por outro lado, os governos estaduais não precisavam se preocupar com os excessivos gastos com a folha de pessoal, pois a inflação se encarregava de reduzir o peso das despesas com pessoal em relação à arrecadação, na medida em que os salários nominais ficavam fixos por alguns meses e a arrecadação de impostos aumentava em função da inflação.
Em um ambiente de aceleração inflacionária, é muito fácil conceder elevados reajustes para os salários nominais, pois o salário real acaba corroído pela inflação crescente.
Em resumo, é muito fácil governar tendo a inflação como parceira, pois o administrador público não tem de enfrentar diretamente as decisões quanto à alocação dos recursos escassos.
Com inflação, não há dilema entre gastar mais em educação e saúde ou com a folha de pessoal. Na verdade, o dilema sempre existe, mas a inflação acaba por mascarar a sua resolução.
No Rio Grande do Sul existem muitas viúvas inconsoláveis que ainda estão de luto fechado. Dos atuais 427 municípios do Estado, 418 estão enfrentando dificuldades imensas para pagar o funcionalismo, devido ao grande comprometimento de suas receitas com pessoal, agora visível sem o manto inflacionário.
O Estado, por meio da redução dos salários reais provocada pela inflação, conseguiu reduzir o peso do pessoal sobre a sua receita de 81% em 1990 até 71% em 1994. Em 1995, entretanto, o desembolso com pessoal deverá crescer novamente, em função da estabilidade econômica.
A exceção a esse quadro de insolvência da administração pública no Rio Grande do Sul é a prefeitura de Porto Alegre, que ao longo da década de 90 nunca ultrapassou o limite de 60% de sua receita com pessoal.
Mas, mesmo ela, em 1995 deverá se aproximar bastante desse patamar, ratificando o impacto negativo da queda da inflação sobre as despesas do setor público.
É interessante analisar-se mais detidamente o desempenho do governo do Rio Grande do Sul ao longo dos anos 1990. O Estado, entre 1990 e 1994, apesar de ter reduzido o comprometimento de pessoal sobre a sua receita líquida, em função da aceleração inflacionária, continuou apresentando déficits em sua Execução Orçamentária, causado pelo aumento dos desembolsos com a sua dívida.
Assim, na medida em que as despesas com pessoal e com a dívida consumiam a quase totalidade dos recursos do Tesouro Estadual, os investimentos permaneciam em patamares extremamente baixos. Desde 1991, os investimentos se situaram em torno de 5% da receita própria líquida do Estado.
Para que se torne mais evidente a orientação das despesas nos anos 90, basta observar que se gastou 12 vezes mais com pessoal do que com investimentos, no período.
Interessante, nesse sentido, é o esforço do atual governo estadual, que acena com algo praticamente impensável no passado: a demissão de servidores públicos.
O programa de demissões voluntárias que o governador Antonio Britto planeja implantar no Rio Grande do Sul prevê a demissão de 18 mil servidores, antecipando-se à provável alteração na legislação federal, que deverá terminar com a estabilidade dos servidores.
A crise por que passam a União, os Estados e os municípios é muito bem-vinda, pois desnuda o Estado brasileiro, que mesmo arrecadando o recorde de 30,7% do PIB em impostos em 1995, segundo dados do Ministério do Planejamento, vai terminar este ano com um déficit operacional equivalente a 1,5% do PIB.
Temos agora dois caminhos possíveis para aplacar a profunda tristeza dos entes públicos. Podemos ressuscitar o defunto, e voltar ao ambiente inflacionário, ou aproveitar a crise para resolver definitivamente o problema, reduzindo o tamanho do Estado e concentrando suas atividades nas áreas sociais.
Ao invés de pensar nas viúvas, devemos, a partir de agora, dar mais atenção aos milhões de órfãos da inflação, que precisam de saúde e educação. O governo deve concentrar seus esforços e recursos escassos em viabilizar para cada cidadão o acesso aos serviços básicos de educação e saúde de boa qualidade, de forma a alavancar as aspirações e o capital humano de cada um dos cidadãos deste país.

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