São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Urubus no lugar de corvos

OSIRIS LOPES FILHO

O episódio do "grampo nos telefones de assessor direto do presidente FHC e a prorrogação do Fundo Social de Emergência evidenciam que o governo detém mecanismos de poder ainda fortes e poderosos, para fixação de mudanças legais ou constitucionais, principalmente das que dependem do assentimento do Congresso.
Mas, indubitavelmente, não tem poderes para administrar o país. Falta-lhe comando e controle da execução das atividades típicas da administração.
O caso do "grampo é emblemático. Contra a Constituição (art. 5º, inciso XII), foi quebrado o sigilo das comunicações telefônicas de assessor direto e íntimo do presidente FHC, por órgão fundamental da estrutura governamental da União, a Polícia Federal.
O Supremo Tribunal Federal, que detém a guarda da Constituição, já interpretou o dispositivo constitucional acima referido, e entendeu que a violação do sigilo telefônico só pode ocorrer nos termos de lei ainda a ser feita, que estabeleça os casos pertinentes, vinculados especificamente à investigação criminal ou à instrução processual penal.
Portanto, enquanto não houver a citada lei disciplinatória das hipóteses da quebra da inviolabilidade das comunicações telefônicas, o "grampo autorizado ou não por autoridade judicial é ilegal. E, pior, constitui crime de violação do sigilo que protege as ligações telefônicas.
A Polícia Federal requereu violação ilegal do sigilo telefônico, baseada em motivo falso (tráfico de entorpecentes, quando se tratava de suspeita de tráfico de influência) e juiz, tecnicamente incompetente, autorizou o desrespeito à Constituição.
Até aí, impera o surrealismo fantástico nacional, no qual persiste o autoritarismo e a truculência policiais e o desrespeito à ordem jurídica.
Funcionários de uma divisão da Polícia Federal entraram clandestinamente na intimidade da estrutura do poder federal. Podem ter "grampeado conversas do próprio presidente FHC.
Se a história é assim tão simples, parece coisa de "anjo.
Ora, a pureza, a candidez, não é típica dos organismos policiais. Parece claro que o caso envolve ou uma conspiração palaciana, objetivando desestabilizar um determinado esquema de poder na Presidência da República, ou ocorreu uma inacreditável ruptura da observância da hierarquia, lealdade e obediência, dentro da estrutura do Ministério da Justiça e da Polícia Federal.
Quando uma autoridade policial subalterna "grampeia as conversas telefônicas realizadas no palácio presidencial, sem conhecimento de seus superiores, está-se diante de uma crise, que comprova a falta de comando do governo sobre a administração e que há algo de podre nos seus porões.
Era de esperar que algo semelhante fosse acontecer, em face da inabilidade e impropriedade da pretendida reforma administrativa a ser promovida apenas na Constituição.
Se a coisa continuar do jeito que vai indo, a podridão tão transparentemente exposta não vai atrair os corvos imaginados pela cultura acadêmica e universalista do nosso presidente, mas os nossos urubus, modestos e eficazes colaboradores da limpeza pública municipal, que vão ser promovidos para o nível federal.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 56, advogado, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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