São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Leoa covarde põe em xeque cooperação entre animais

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os biólogos aprenderam recentemente que nem só entre os seres humanos existem indivíduos preguiçosos em meio a outros trabalhadores, capazes de pôr em risco a sobrevivência do grupo e mesmo assim não se emendarem.
A mais nova surpresa foi descobrir esse tipo de comportamento entre bichos considerados modelos de cooperação, as leoas.
Os pesquisadores Craig Packer, da Universidade de Minnesota (EUA), e Robert Heinsohn, da Universidade Nacional Australiana, em Canberra, notaram que as estratégias de cooperação entre leoas na Tanzânia eram mais complexas do que a teoria pregava.
Um bando de leões consiste em média de duas a nove fêmeas adultas (pode chegar até mesmo a 18) e de dois a seis machos adultos (pode haver até nove machos).
Os números, assim como a pesquisa dos dois, são baseados nos bandos do Parque Nacional Serengeti, uma área de 25 mil km 2 com uma população de cerca de 3.000 leões. Packer pesquisa na região desde 1978.
As leoas costumam cooperar em atividades como a caça ou o cuidado dos filhotes.
Uma das suas atividades grupais mais comuns, e importantes, é a defesa do território contra outras leoas. "O território é essencial para a reprodução bem-sucedida", escreveram os dois em um artigo na revista científica "Science".
Depois de acompanhar um grupo de leoas por cerca de dois anos, eles notaram que algumas são mais ousadas na defesa, e outras decididamente covardes, demorando mais para responder a uma ameaça potencial.
Os cientistas usaram uma técnica já estabelecida para estudar o comportamento defensivo das leoas: transmitir rugidos de leoas estranhas com um alto-falante.
A reação típica de quem defende é se aproximar do alto-falante. Mas nem todas fizeram isso com presteza.
A defesa costuma ser feita por pares de leoas, o que permitiu diversificar o experimento, fazendo a ameaça hipotética ser pequena -com o rugido de apenas uma leoa- ou grande, com mais de uma. A grande surpresa foi descobrir, no mesmo par, uma leoa que avançava resolutamente, e outra que demorava mais para reagir.
A diferença, mesmo de alguns segundos, não é trivial. A maior causa da morte de leões é a luta com outros leões. A leoa que avança primeiro, e sozinha, tende a ser a primeira vítima -muitas vezes fatal.
Esse comportamento contradiz o que se espera normalmente da teoria evolutiva. Não faz sentido que um animal faça algo em detrimento de si próprio e em benefício de outros -mesmo que os outros sejam o seu próprio bando.
Os biólogos têm teorias para explicar comportamentos altruístas ou de cooperação. Mas elas não são suficientes para explicar as leoas.
"Existe um abrangente corpo de teoria para explicar como os animais devem se comportar. Na realidade, os animais vivem em um mundo muito mais complicado, no qual as teorias não se adaptam", disse Packer em entrevista à Folha, por telefone.
Uma dessas explicações diz que um comportamento, cooperativo ou não, tende a se firmar por uma questão de reciprocidade, baseado em uma experiência prévia do animal. Algo como, "como você me ajudou ontem, eu te ajudo hoje".
Uma maneira de a teoria ver a coisa é conhecida como "o dilema do prisioneiro", uma situação típica da teoria dos jogos.
Nessa situação, dois presos em celas separadas são acusados de um crime. O tamanho da sentença vai depender do que disserem sem poderem se comunicar entre si.
Se um reafirma a inocência enquanto o outro confessa, o primeiro ganha uma sentença maior e o segundo sai livre (o dilema é baseado no direito americano, onde é possível "negociar" com a Justiça, confessando em troca de vantagens). No caso, a opção mais segura é confessar, já que aquele que tentar ser altruísta pode continuar preso. O dilema serve para explicar como pode surgir a cooperação ou uma desconfiança perene.
Mas, no caso de um par de leoas que inclui uma "covarde", o comportamento é mais complexo. A leoa ousada reconhece o comportamento da colega, segundo os dois pesquisadores, e não confia nela. A leoa corajosa, quando está com uma colega nem tanto, avança mais devagar em direção da ameaça e pára mais vezes para olhar para trás e ver se está sendo seguida.
Os dois pesquisadores puderam classificar as leoas em quatro tipos, de acordo com sua estratégia defensiva.
Existem aquelas "cooperadoras incondicionais", que sempre iniciam a reação defensiva; outras são "relutantes incondicionais", que sempre vão em segundo lugar; ainda outras são "cooperadoras condicionais", que relutam menos em avançar quando são mais necessárias; e as "relutantes condicionais", que relutam mais justamente quando sua presença seria mais necessária dado o tamanho da ameaça.
Por que a leoa ousada não pune a colega covarde, dando uma lição para que ela deixe de se comportar mal? É o que os biólogos esperavam. Craig confessa a perplexidade. Depois de refletir um pouco, ele responde: "Não sei. Não faria mesmo diferença. As leoas ousadas teriam perdido tempo, necessário para uma resposta rápida".
Ou seja: "Elas têm de conviver com isso. Você tem um equilíbrio entre as boas e as más. Um bom número de espécies animais possui os trabalhadores honestos e os preguiçosos. Se existem muitos indivíduos, surge a oportunidade para os relapsos".
A análise fica mais complicada quando se pensa nos efeitos a longo prazo. A reação de defesa pode trazer consequências imediatas, como uma briga, ferimentos ou morte. Mesmo a leoa covarde entende que a defesa do território é essencial, e isso não é facilitado se ela coloca em risco a vida de sua colega mais ousada. A leoa corajosa precisa de companhia também para cuidar dos filhotes ou caçar e não pode dispensar suas colegas de bando só porque demoram um pouco mais para arriscar a pele.
"Esse estudo sugere que grupos cooperativos podem incluir uma grande variedade de estratégias de comportamento", escreveram os dois pesquisadores no artigo na "Science". A maior parte da teoria sobre a evolução da cooperação tem enfocado jogos entre duas pessoas, lembram eles, e isso já bastou para produzir um bom nível de complexidade; o próximo desafio é estudar o comportamento individual em situações que envolvem grupos maiores.
Os leões são particularmente úteis nesse tipo de estudo, já que são o único dos felinos com comportamento social complexo, além de viverem em locais que permitem a experimentação, como o uso dos alto-falantes para checagem de reações defensivas. "O leão é uma boa espécie para o estudo da cooperação", diz Packer.
Um outro estudo importante de Packer, publicado em 1991 na revista científica britânica "Nature", revelou a estrutura de parentesco por trás dessas relações de cooperação.
Ele mapeou a estrutura de parentesco através de técnicas de "impressão digital de DNA" -a substância que constitui o código genético (hereditário)-, junto com D. A. Gilbert, do Centro de Pesquisa Washington, S. J. O'Brien, do Instituto nacional do Câncer, e A. E. Pusey, também da Universidade de Minnesota.
Entre outras descobertas, eles notaram que as fêmeas de um bando são sempre geneticamente próximas, enquanto os machos podem ou não ter essa relação. Também se viu que os casais eram geralmente não-aparentados.
Os leões também têm comportamentos sociais curiosos. A maior parte deles deixa o bando em que nasceram antes de quatro anos de idade e passa por uma fase nômade antes de ser aceito em um novo bando.
Assim como as fêmeas defendem o território contra outras leoas, os machos também fazem sua patrulha contra animais do mesmo gênero. Quando um grupo de machos ganha acesso às fêmeas de um bando, todos os filhotes dos outros leões são mortos ou expulsos (o que mostra que o desenho animado dos estúdios Disney "O Rei Leão" tem uma base biológica além de shakespeariana).
Quanto maior o grupo de machos, maior a chance de eles conseguirem se estabelecer junto a um grupo de fêmeas, expulsando os rivais.
As pesquisas indicam que um grupo maior de leões tende a ter mais filhotes per capita. Como passar os próprios genes é a principal regra do jogo evolutivo, esse tipo de cooperação sem dúvida tem uma base mais fácil de entender.

Texto Anterior: Comportamento pode ser genético
Próximo Texto: Leão e homem são sociais
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.