São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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a arte de lembrar e esquecer

por Lúcia Cristina de Barros

LÚCIA CRISTINA DE BARROS
A ARTE DE LEMBRAR E ESQUECER

pensamento, das lembranças, das meditações, a memória genética, esse conjunto que pertence a homens e mulheres. Mas a mulher tem uma memória das circunstâncias humanas. Digo em meu discurso: "Narro, porque sou mulher".
O que seria a "memória feminina"? A mulher não pôde se abeberar diretamente da memória histórica, não pôde ser, por exemplo, Júlio César. Mas esteve na tenda dele. Assim, ela tinha o que os outros lhe contavam (e quem conta dilapida o que sabe), uma memória que se enriqueceu com a solidão. Essa mulher, artista, sempre fez esforços criativos para complementar as carências de sua memória. Ela pintava, costurava, escrevia receitas elaboradíssimas, quase se cegava para contar, bordar, costurar. E era vidente, porque ficava cega. Essa memória de mulher é fascinante. Tenho toda a cultura dos homens mais essa memória secreta, herdada, pelo fato de ter sido alguém que sempre esteve no centro do salão, mas também no cantinho de uma sala, porque não me deixavam ficar no meio. Sou um ser complementar, estou sempre complementando para manter a ilusão de que tenho uma frase inteira.
É bom reconhecimento em vida?
É, ainda que o ato de escrever não espere uma recompensa: cumprem-se os deveres e a paixão do ofício. Mas se você tem um empenho pessoal profundo, não fez concessões em seu texto, é uma autora brasileira, escreve em português -língua deslumbrante, mas solitária dentro do concerto das línguas aplaudidas-, então, ter seu trabalho reconhecido é um prazer.
Como é a relação entre prazer e dificuldade na criação literária?
O escritor é alguém que acumula: uma casa abarrotada, um palácio, uma miséria abarrotada. Um repositório de desordens diante do qual ele capitula porque se entrega com paixão à desordem do instinto narrativo. Depois vem a seleção. Mas ele necessita dos resíduos, do que é espúrio, para poder alcançar a matéria humana, a paixão do homem. Não deve haver expurgo na arte. O expurgo nega a essência dramática do homem. Um certo caos
é o toque da graça do texto.
Você tinha um objetivo inicial que identifica hoje, ao olhar a sua obra?
Comecei a escrever para alargar meu imaginário e minha vida. Um grande prêmio que a literatura me deu foi o de criar aquelas metáforas que, acima da estética, são metáforas da minha alma. Depois, vi que arte implicava aprendizagem. Entre uma história e outra, você tem que eliminar o que já sabia para buscar uma expressão nova, não viver dos restos mortais do livro anterior. Comecei a ter um sentimento de obra.
O que significa isso? Que fui cumprindo o que me era possível, com as limitações do Brasil, as dificuldades de publicação, as desconfianças da sociedade relativas ao meu texto. Quando olho para trás, não sinto vergonha do modo como exerci meu ofício.
O que o prêmio muda para você?
O prazer do reconhecimento não se estende além de seus méritos. Poder esquecer é um mérito para um artista. Ao esquecer, você não arrasta para o novo livro as obrigações, os aplausos, as palavras generosas. Estou contente com o prêmio, mas quando escrevo, ele não existe.

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