São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 1995
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Filme traz história de pessoas se afundando

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Terra Estrangeira". Pensei que era sobre brasileiros em Portugal. Mas era mais que isso. A terra estrangeira não era um país, era a própria terra, no sentido de planeta, por onde os personagens, sobretudo Alex (Fernanda Torres) e Ezaguirre (Fernando Alves Pinto), perambulam sem destino.
Por que as pessoas se sentem estrangeiras na terra? Para a escritora Hannah Arendt, elas se tornam estrangeiras porque são destituídas de um lugar no mundo, um espaço político, onde suas opiniões se tornam significantes e as ações efetivas.
Diante dessa perda, o único refúgio é a amizade e a simpatia, a graça do amor que lhes dá uma confirmação de si próprios e de sua dignidade.
Mas o que acontece quando além da falta de espaço político é negada às pessoas seu refúgio amoroso? Aí então, a terra estrangeira não é apenas o planeta, mas a terra no sentido de chão básico, que aos poucos se transforma em areia movediça.
"Terra Estrangeira" é a história de pessoas se afundando. Ezaguirre persegue um sonho de segunda mão. Viaja para San Sebastián porque o grande desejo de sua mãe era voltar para sua cidade natal. Ela já morreu, abatida pelo Plano Collor, pela imagem da então ministra Zélia Cardoso de Melo na televisão -talvez pela combinação dos dois.
Mas se Ezaguirre buscava um lugar mítico, Alex já tinha vendido seu passaporte, abrindo mão da nacionalidade e da própria esperança de ir e vir. Os mendigos de "Esperando Godot" ainda ameaçavam se mover para outro lugar, embora nunca saíssem dali. Alex não: se a terra era estrangeira em toda a parte e mesmo embaixo de seus pés, por que se mexer? Acossada como Ezaguirre segue também para San Sebastián.
Em Portugal, diante do mar, Alex diz: "Aqui começou tudo, os portugueses saíram para a conquista dos mares. Ezaguirre responde com um tom de ironia: "E acabaram descobrindo o Brasil".
Mas se aqui começou tudo e os dois estão aqui, perdidos e sem esperança, é porque se fechou um ciclo: dobrado o cabo, o que restou do país que descobriram, das vidas que floresceram ali e o que restou do lugar de onde partiram, quem são os portugueses que hoje levam três horas para atravessar a ponte?
Não há respostas sobre a Terra Estrangeira, um bom lugar para perder alguém ou se perder de si próprio, como diz um dos personagens do filme. Há apenas a desesperança em close, às vezes tão intensa que você se sente como se falasse com alguém que segura a gola de seu casaco e lhe rouba toda as perspectivas.
Brasileiros lá fora, mas sem saudades do Brasil. Sem feijoadas, caipinha, samba na neve. Brasileiros dos novos tempos, ejetados pela falta de perspectiva, tentando abrir com o corpo a mesma liberdade dos capitais que voam na ponta dos computadores.
Alex trabalhou em um restaurante, Ezaguirre contrabandeou pedras preciosas dentro de um violino. Ambos usaram o trabalho como meio para sobreviver e realizar o sonho de cruzar o oceano. Mas de um modo geral é esse o trabalho lá fora -um trampo que nos mantém vivos.
Vivos para quê? Para percorrer uma paisagem sem sol e se abraçar diante de um velho navio? Talvez seja esse o momento mais sublime do filme "Terra Estrangeira": o amoroso abraço diante da transatlântica carcaça de nossos sonhos, caravelas carcomidas, degregados e dentistas, travestis e vice-reis, tamancos e esmeraldas.
Mas já estou eu de novo reduzindo tudo ao horizonte luso-brasileiro. O transatlântico não é apenas a metáfora de uma estéril descoberta mútua.
Em Fellini, as pessoas saíam para o mar e o viam iluminado, feérico, um milagre deslizando ao largo. Aqui, o transatlântico estacionou à luz do dia, nu e enferrujado. Navegar não é preciso, viver é fugir em preto-e-branco.

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