São Paulo, segunda-feira, 27 de novembro de 1995
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Salve o mercado global

DARCY RIBEIRO

Erramos: 28/11/95
Uns tecnocratas bisonhos, catados no mundo pelo F11, andam encantados com as excelências do mercado mundial. É moda recente, e já obsoleta, mas continua fazendo suas cabeças alienadas. Deram para adjetivá-lo de global, para mais enfatizar suas qualidades e poderes. Têm toda razão. A coisa é realmente espantosa, de tão lucrativa. Mas não é novidade nenhuma. Nem jamais criou prosperidade generalizável para os imensos proletariados externos conscritos para ele.
Quando a preocupação se translada da noção de lucros para a de necessidade, a coisa muda. O mercado é total e completamente indiferente à satisfação de necessidade básicas tais como a nutrição, a saúde, a educação. É até hostil a elas, porque atendê-las restringe a lucratividade.
Governantes muito empenhados em magnificar os lucros empresariais não têm olhos para perceber o quanto crescem a fome, a morbidade e o atraso da maioria do povo brasileiro. Menos ainda para admitir que esses males são sanáveis e que não precisam ser engabelados pela caridade.
O que falta aos tecnocratas deslumbrados é a percepção de quanto antigo é o sistema mundial de mercado. De que o Brasil nasceu dentro dele e até ajudou a criá-lo. Para isso, converteu-se num moinho de gastar gentes, que liquidou, na produção do que não comiam, dezenas de milhões de negros e índios. Com efeito, nascemos para prover açúcar para adoçar boca de europeu. Ele foi a primeira grande mercadoria mundial, equivalente no século 17 ao que hoje representa o petróleo. Um montante avaliado em 1 bilhão de libras esterlinas, isto é, mais do dobro do que produziu a economia inglesa ou a francesa.
Os ingleses imitaram logo os portugueses e caíram sobre os negros e africanos. Descobriram que caçá-los e vendê-los era o negócio melhor desse mundo. Os negros nos custavam metade daquele bilhão de libras, e seu provimento era muito melhor negócio do que produzir o açúcar.
Ninguém se preocupava com o destino da negrada, que era a força energética daqueles tempos. Duravam em média cinco a sete anos no eito. Mas nesse curto tempo, trabalhando de sol a sol, pagavam seu preço e o custo de sua reposição e ainda davam gordos lucros, numa produtividade esplêndida.
A montagem desse sistema produtivo foi a grande façanha lusitana, holandesa e francesa. Possibilitou a modernização da Europa e a edificação dos esplêndidos castelos, tão belos como inúteis, que tanto atraem turistas. Seu efeito maior aos olhos dos europeus era, porém, salvar os negros africanos da tribalidade para integrá-los na cristandade. Daqueles engenhos nascemos, num efeito absolutamente inesperado.
Tudo bem, Isso é nossa história. O diabo é que os tecnocratas estão empenhados em reencarná-la, reintegrando o Brasil ainda mais carnalmente ao mercado mundial, a que agora dão o nome de global, sempre na condição de um proletariado externo, posto aqui para atender reclamos alheios em prejuízo de si próprio.


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