São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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João do Rio caçoa dos apressadinhos

JOÃO DO RIO

"Dar tempo ao tempo" é uma frase feita cujo sentido a sociedade perdeu integralmente. Já nada se faz com tempo. Agora faz-se tudo por falta de tempo. Todas as descobertas de há vinte anos a esta parte tendem a apressar os fatos da vida. O automóvel, essa delícia, e o fonógrafo, esse tormento, encurtando a distância e guardando as vozes para não se perder tempo, são bem os símbolos da época.
O homem mesmo do momento atual, num futuro infelizmente remoto, caso a terra não tenha grande pressa de acabar e seja levada na cauda de um cometa antes de esfriar completamente -o homem mesmo será classificado, afirmo eu já com pressa, como o "homus cinematograficus".
Nós somos uma delirante sucessão de fitas cinematográficas. Em meia hora de sessão tem-se um espetáculo multiforme e assustador cujo título geral é: "Precisamos Acabar Depressa".
O homem-cinematográfico acorda pela manhã desejando acabar com várias coisas e deita-se à noite pretendendo acabar com outras tantas. É impossível falar dez minutos com qualquer ser vivo sem ter a sensação esquisita de que ele vai acabar alguma coisa. O escritor vai acabar o livro, o repórter vai acabar com o segredo de uma notícia, o financeiro vai acabar com a operação, o valente vai liquidar um sujeito, o político vai acabar sempre várias complicações, o amoroso vai acabar "com aquilo". Daí um verdadeiro tormento de trabalho. (...) O homem-cinematográfico, comparado ao homem do século passado, é um gigante de atividade. O comerciante trabalha em dois meses mais do que o seu antecessor em dez anos; (...).
Uns acabam pensando que encheram o tempo, que o mataram de vez. Outros desesperados vão para o hospício ou para os cemitérios. A corrida continua. E o Tempo também, o Tempo insensível e incomensurável, o Tempo infinito para o qual todo o esforço é inútil, o Tempo que não acaba nunca! É satanicamente doloroso. Mas que fazer? Acentuar a moléstia, passar adiante logo e recordar, nestas noites longas-longas? Não! Brevíssimas! -de mais o bom tempo de antanho em que os nossos avós, sem relógios assegurados, sem a pressa de acabar, nos preparavam este presente vertiginoso com tempo ainda para verificar como os dias aumentavam o pulo de um gato, o passo de um sargento ou o farto jantar de um frade...

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