São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Monteiro Lobato defende o cinema

MONTEIRO LOBATO

O grande erro dessa casta de homens é confundir corrupção com evolução. Condenam as formas novas de vida, que se vão determinando em consequência do natural progresso humano, em nome das formas revelhas. Logicamente, para eles, o homem é a corrupção do macaco; o automóvel é a corrupção do carro de boi; o telefone é a corrupção do moço de recados.
Conheço um que não cessa de catonizar contra os Estados Unidos e sua nefasta influência na vida brasileira. Isto aqui seria o paraíso terreal se não fora o ianque com a sua penetração irresistível. (...) Rolamos por um despenhadeiro porque o americano empurra.
No dia em que mo apresentaram estava ele num bar a sorver regaladamente um "ice cream soda", muito bem posto em seu terno de Palm Beach. Viera da Tijuca de bonde, estivera no escritório a ditar cartas à datilógrafa, tinha falado três vezes ao telefone e dado um pulo ao Leblon, numa Buick de praça, para concluir um negócio. Depois do "ice" iria ao Capitolio ver a Gloria Swanson na "Folia".
O "ice" refrescou-lhe as tripas; o terno de Palm Beach tornou-lhe suportável o peso do calor; o bonde o trouxera da Tijuca em trinta minutos por três tostões; as cartas feitas numa Remington impediram que sua má letra fosse dar origem a atrapalhações comerciais; as telefonadas pouparam-lhe uma trabalheira insana; a Buick permitiu-lhe voar agradavelmente ao Leblon em minutos; o cinema ia fechar o seu dia com uma complexa e deleitosa impressão de arte e beleza. (...)
Sem o americano teria de gastar seis horas para a ida ao Leblon, se não morresse pelo caminho de insolação. Sem o americano teria de escrever à unha suas cartas, com poucas probabilidades de se fazer entendido no seu aranhol de gatafunhos. E se acaso depois de tanta trabalheira inda lhe restassem forças para tomar uma hora de teatro, sem o americano teria de ir ver sua beiçuda e morrinhenta cozinheira a figurar de "estrela negra" no Largo do Rocio, em vez de maravilhar-se com o encanto da sereia de olhos de gata que é a Gloria Swanson.
Catão malsina justamente as únicas coisas que se salvam nesta terra, todas devidas à influência americana. Se a cidade funciona, isso o deve ao engenho do povo que lhe deu o presente máximo: a velocidade. A velocidade no transporte da carga, a velocidade no transporte do pensamento. E que lhe dá, com os maravilhosos espetáculos da arte muda, uma lição de moral que, se fora aceita, tiraria ao Rio o seu aspecto de açougue do crime passional. O cinema americano ensina o perdão...

JOSÉ BENTO MONTEIRO LOBATO (1882-1948) foi editor -fundou a Editora Brasiliense-, escritor para adultos ("Urupês", 1918) e sobretudo crianças ("Reinações de Narizinho", 1921, que iniciou a coleção do Sítio do Picapau Amarelo). Participou de campanhas nacionalistas, centradas na defesa da exploração do petróleo por brasileiros. O texto acima é um trecho da crônica, escrita nos anos 20, intitulada "A Influência Americana".

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