São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Sem-terra, sem-Mercedes, sem-vergonha

SAULO RAMOS

Nada tenho contra os sem-terra, a não ser a irritação diante do artigo no plural e o substantivo no singular. Já fui um deles, quando meu pai vendeu sua fazenda de café para pagar o banco. Foi de amargar: o financiamento da safra de um ano passou a valer mais do que a fazenda. Virei sem-terra. E "never more" -"Nunca mais", frase de "O Corvo", poema de Edgar Alan Poe.
Guardei da agricultura a impressão de que a rentabilidade é ínfima diante do trabalho que dá. A coisa acaba numa luta viciosa entre colheita e pagamento dos bancos, depois de passar pela seca, geadas, crise de preços, resultando no visionarismo poético dos homens do campo: a eterna esperança no ano que vem.
Quando fiquei reduzido a sem-terra, não me ocorreu a idéia de invadir fazenda alheia. Pobreza até na imaginação. E não faltavam áreas merecedoras de uma boa invadidazinha: já tinham sede, piscina, pastos formados, eletricidade, gado à vontade, churrasco para mais de mês. Os donos deveriam estar afogados nos empréstimos bancários e dariam graças a Deus se fossem desapropriados pelo governo.
Nessas operações, em alguns casos, há uma não-combinada cumplicidade entre invasores e invadido.
Dá-se o bode quando o governo não paga ou paga em títulos da dívida agrária, totalmente desmoralizados porque são garantidos -os únicos- pela Constituição da República. Se tivessem garantia do Banco do Brasil, ou de qualquer outro banco credor da agricultura, seriam mais aceitáveis. Garantidos pela Constituição, não ganham credibilidade porque a cidadã não tem fundos suficientes. Os únicos fundos que ainda funcionam são os inventados pelo Fernando Henrique e que entraram na Constituição por meio das disposições transitórias, isto é, pelos fundos.
Por ser advogado tenho a irritante mania de raciocinar sob a influência do Direito e das leis vigentes. Não encontrei outro jeito. Há milhares de famílias desejando ter seus acres para cultivar. Defendem o direito de tê-los, ou tomá-los, para dar efetividade ao que se denomina justiça social. A lei vigente, porém, garante aos com-terra o direito de domínio, posse, uso, usufruto e herança dos filhos. Está tudo escrito na Constituição e no Código Civil, justiça social e direito de propriedade.
Assim, vejo o movimento dos sem-terra, investindo contra a terra dos outros, como uma engraçada tertúlia jurídica, apaixonadamente defendida nos contraditórios extremos: o direito "à" propriedade contra o direito "de" propriedade. Nesse debate os argumentos vão se esmerando. A propriedade mal-utilizada, improdutiva, na opinião de quem invade, deve ser transferida ao invasor, mesmo sem garantia de que saberá utilizá-la ou saberá como produzir, ou não vá vendê-la depois de ganhá-la.
Mas isso é problema para o futuro, quando outros invasores invadirem as terras invadidas, alegando improdutividade dos minifúndios.
Então surge o juiz e aplica a lei vigente contra o pretendente à propriedade e a favor do direito de propriedade. Passa-se à fase de xingamento do juiz.
Reacionário, serviçal, o Poder Judiciário precisa de controle externo, pois é um insulto a aplicação da lei, que protege os latifundiários. À essa altura, latifúndio é tudo que pode ser invadido, independentemente do tamanho. Quem comprou terra para um preguiçoso investimento aprendeu agora que melhor seria depositar dólares na Suíça ou, em real, ficar no CDB.
Estaria fora de perigo? Não se sabe. Por enquanto, os sequestradores não se lembraram de dar um cunho social para legitimar suas atividades. Podiam chamar-se de sem-dinheiro e defender o direito de tê-lo através da expropriação forçada de quem o ganhou e tem algum medo de perder a vida.
Depois viriam o direito dos sem-teto invadirem casas, dos sem-carro tomarem os automóveis alheios, de preferência os que parassem diante do farol vermelho, porque os donos pensariam, equivocadamente, tratar-se de um assalto. Poder-se-ia estimular até o movimento dos sem-Mercedes, com reserva de atuação no Jardim América e Morumbi, discriminando-se a classe inferior dos apenas sem-carro.
Surgirão várias organizações. Os sem-moto, sem-TV, sem-computador, sem-telefone, sem-modem, sem-modess, sem-modos, sem-graça, sem-nada ou sem-tudo. Claro que um sem-vergonha inventará o movimento dos sem-mulher, reivindicando a do próximo, mas sem-ônus de levar a sogra, numa justa partilha das sabinas.
Felizmente, não tenho fazenda. Se tivesse, chamava esse tal de Rainha, dava-lhe a terra de presente sob duas condições: a propriedade seria dele ou de quem indicasse, mas haveria de chamar-se Diane, a merecida nora de qualquer rainha, e o novo proprietário, ou os novos, assumiria os financiamentos bancários que pesassem sobre o imóvel.
Deixem que os invasores se transformem em donos das terras. Com o tempo os bancos tiram tudo, a menos que se faça o óbvio: reforma agrária tecnicamente planejada, mediante colonização sustentada em centros de assistência à produção e à produtividade, o que seria válido até para os com-terra.
Mas isso é coisa de governo com-juízo, sem-grampo, sem-nhenhenhém, sem-lengalenga, de que estamos longe, muito longe, mais do que cem léguas.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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