São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Pela reforma psiquiátrica

ROBERTO GOUVEIA

Em 1995 conquistamos o Código de Saúde, lei complementar 791, de nossa autoria, aprovada pela Assembléia Legislativa e sancionada em 9 de março pelo governador Mário Covas.
Dedicamos uma seção específica à saúde mental. Diz o seu artigo 33: "No tocante à saúde mental, o SUS, estadual e municipal, empreenderá a substituição gradativa do procedimento de internação hospitalar pela adoção e o desenvolvimento de ações predominantemente extra-hospitalares, na forma de programas de apoio à desospitalização que darão ênfase à organização e manutenção de redes de serviços e cuidados assistenciais destinadas a acolher os pacientes em seu retorno ao convívio social, observados os seguintes princípios:
1) Desenvolvimento, em articulação com os órgãos e entidades, públicas e privadas, da área de assistência e promoção social, de ações e serviços de recuperação da saúde de pessoas acometidas de transtorno mental e sua reinserção na família e na sociedade.
2) A atenção aos problemas de saúde mental, em especial os referentes à psiquiatria infantil e à psicogeriatria, se realizará basicamente no âmbito comunitário, mediante assistência ambulatorial, assistência domiciliar e internação de tempo parcial, de modo a evitar ou a reduzir ao máximo possível a internação hospitalar duradoura ou de tempo integral.
3) Toda pessoa acometida de transtorno mental terá direito a tratamento em ambiente o menos restritivo possível, o qual só será administrado depois de o paciente estar informado sobre o diagnóstico e os procedimentos terapêuticos e expressar seu consentimento.
4) A internação psiquiátrica será utilizada como último recurso terapêutico e objetivará a mais breve recuperação do paciente.
5) Quando necessária a internação de pessoa acometida de transtorno mental, esta se dará, preferentemente, em hospitais gerais.
6) A vigilância dos direitos indisponíveis dos indivíduos assistidos será realizada de forma articulada pela autoridade sanitária local e pelo Ministério Público, especialmente na vigência de internação psiquiátrica involuntária."
A lei fala por si. Ao aprová-la, São Paulo se soma a outros Estados (RS, PE, CE, DF, AL e MG) na construção do arcabouço legal que torna irreversível a implantação da reforma psiquiátrica preconizada pela ONU, OMS/Opas e Ministério da Saúde.
Decorrência natural desse processo será a aprovação do projeto de lei nº 366/92, que ainda se encontra em tramitação para estudos e aprimoramentos.
Nesse projeto os recursos públicos são orientados para a implantação de ações de saúde mental em unidades básicas de saúde, centros de convivência e cooperativas, núcleos e centros de atenção psicossocial, lares abrigados, hospitais-dia, serviços de emergências e enfermarias de saúde mental em hospitais gerais, além de ações nas áreas de educação, trabalho, moradia e justiça. Dessa forma estaremos promovendo cidadania, oferecendo assistência baseada em preceitos éticos e humanos.
A reforma incomoda aqueles cujos interesses particulares na área se sobrepõem à necessidade de mudança. O modelo arcaico, ainda hegemônico, provoca a desassistência, a segregação, a cronificação do sofrimento, o abandono e a morte de milhares de doentes, como atestam dados do Ministério da Saúde.
Nos últimos dois anos morreram nos hospitais psiquiátricos brasileiros 3.222 pessoas, sendo 1.332 em São Paulo, sem qualquer chance diante da violência institucional. Assim como os 300 mil mortos desde a criação do hospital psiquiátrico no país, ainda que esse número seja subestimado.
Essas mortes, em sua grande maioria, não foram causadas pela patologia que motivou a internação. No verso da mesma moeda, aproximadamente 30 mil leitos psiquiátricos (40%) são ocupados pelo mesmo paciente há mais de cinco anos. São moradores daquelas instituições, deteriorados física, mental e socialmente, denunciando a falência daquele "projeto terapêutico".
Esses dados demonstram que o hospital psiquiátrico funciona mais como porta de entrada do que de saída.
Gasta-se no país R$ 500 milhões com 75 mil leitos psiquiátricos (80% deles privados e conveniados), realizando 400 mil internações anuais, respondendo às necessidades de apenas 0,52% da população a altos custos e sem resolutividade. Recursos esses suficientes para atender às reais necessidades de toda a população por meio da reforma por nós defendida. Foi o ocorrido na gestão municipal de São Paulo de 89/92, quando, com a ampliação da assistência substitutiva, foram atendidas 120 mil pessoas por ano contra apenas 8.000 internações nos hospitais desativados.
As leis que conseguimos aprovar provocam transformações, trazendo à tona o debate sobre uma temática antes ocultada e considerada como problema "alheio". Na verdade, há uma imensa dívida social a ser paga com os esforços conjuntos de toda a sociedade.
As leis não curam pacientes, mas correspondem a novos estágios de consciência dos direitos de cidadania, de produção científica, bem como da prática no campo da saúde. O desconhecimento delas, intencional ou não, resulta em crimes a serem coibidos pelo Estado Democrático de Direito.

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