São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Arte da confecção de vitrais sobrevive

MARIANNE PERETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como num conto das mil e uma noites, em uma praia do Oriente, alguns pescadores, ao redor de um fogareiro improvisado, olharam fascinados a areia derretida na cinza transformar-se em uma matéria brilhante: o vidro acabara de nascer. Onde? Ninguém sabe. A Síria, o Líbano, o Egito e a Pérsia conservam vestígios de vidro de até 4.000 anos antes de Cristo.
No século 11, a descoberta das tiras de chumbo, na França, permitiu a curva no desenho. O vitral começou a ter figuras simplificadas, mas já com uma gama de cores que incluía o vermelho, o azul, o verde, o amarelo e o branco, fundidas ao vidro.
Foi o suficiente para criar os belos e emocionantes vitrais dos séculos 12 e 13 que, com um desenho forte, acentuado pelos contornos pretos e uma "grisalha", reforçam as formas coloridas e refletem o sentimento profundamente místico daquela época.
Naquele momento, cada cidade estava construindo sua catedral. São desses séculos, 12 e 13, os mais bonitos vitrais que fizeram a glória de Chartres.
Os artistas de Chartres formaram ateliês com mestres e artesãos, guardando o segredo da técnica, só revelado aos filhos. Vários desses lugares ainda existem.
Eu mesma encomendei a Jacques Loire, que executa vitrais para o mundo inteiro, uma peça em "dalle de verre" -vidro da espessura de uma polegada e com um colorido maravilhoso- para o painel que fiz para Escola Técnica de Eletricidade, em Paris.
Muitos artistas, como Chagall, já fizeram uso de seus serviços. Chartres é o santuário do vitral. Fica a 90 km de Paris -o que permite um passeio rápido de um dia, tempo suficiente para assistir às duas iluminações dos vitrais.
Nas catedrais dos séculos 14, 15, 16 e 17, a técnica progressivamente se complica. O vidro é mais fino, mais transparente, trabalhado, gravado, pintado no vidro.
Percebe-se ali que o vitral perdeu-se. Mas o século 19 traria Gaudi, com vitrais bonitos e originais criados para a catedral da Sagrada Família, em Barcelona.
Mais tarde, flores compridas, elegantes mulheres com cabelos longos tocados pelo vento, formariam as imagens do art nouveau.
Nos anos 20, os desenhos passariam a refletir o abstracionismo com seu desenho geométrico mais construtivo. Artistas como Rouault, Leger, Chagall e sobretudo Matisse -o mais inventivo de todos- deram uma contribuição importante para essa arte.
Brasil
O vitral está vivo. E não é preciso ir muito longe para conhecer suas tendências atuais. Aqui no Brasil houve expressiva produção de vitrais no fim do século passado e na primeira metade deste.
Um dos melhores vitralistas, Heinrick Moser, produziu em Recife. Em São Paulo, os Heilmar criaram uma indústria de grande importância para vitrais e os conhecidíssimos Conrad Sorgenicht (pai e filho) decoraram a cidade com um certo charme.
Ao introduzir o meu trabalho no Brasil, atendendo inicialmente a arquiteta Janete Costa, imprimi características pessoais e originais aos vitrais, tomando o cuidado para que os suportes de ferro nunca fossem quadriculados.
Prefiro fazê-los obedientes ao meu desenho, de modo que as duas coisas se confundam. Além disso, costumo utilizar transparências, vários planos e poucas cores.
Esses elementos estão presentes nas peças que há 20 anos venho criando para a arquitetura de Oscar Niemeyer. Para o Memorial Juscelino Kubitschek, em Brasília, projetei um pequeno vitral redondo com cores do fervor e da paixão (vermelho e roxo), projetadas para comover os visitantes.
Na catedral de Brasília fiz um vitral bem diferente de todos já conhecidos. Com 2.200 m2, é o maior do mundo. Para harmonizá-lo com a arquitetura, deixei grandes transparências que permitem visualizar o céu azul, em contraste com o meio-cristal -nas cores azuis, verde e branco-leitoso- fabricado pelo sr. Emílio Zanon.
Em muitas peças mesclo características de vitral e escultura, como na do Superior Tribunal de Justiça, "A Mão de Deus".
No momento em que me debruço sobre novos projetos, como os que estou realizando para duas igrejas -em Recife e Olinda- e para uma capela do século 17 em Portugal, me ligo a essa corrente de acasos e habilidades humanas, que construíram a história dos vitrais, desde uma longínqua data, em uma praia do Oriente.

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