São Paulo, sábado, 2 de dezembro de 1995
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Como regenerar São Paulo

RUBENS RICUPERO

Meu amigo Norman Gall, diretor-executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, é o mais paulista dos nova-iorquinos. Veio para cá há mais de 12 anos como correspondente da revista econômica "Forbes" e reencontrou entre nós muito da Nova York quintessencialmente urbana e multiétnica de sua infância no Bronx, bairro de imigrantes como o nosso Brás.
Conta Norman Gall que estava em Calcutá, estudando como essa gigantesca cidade indiana conseguiu reduzir a mortalidade infantil ao nível de São Paulo, embora só dispusesse de um décimo de nossa renda per capita, quando soube da intervenção do Banco Central no Banespa.
Percebeu, desde o início, que esse evento-símbolo da falência do setor público de São Paulo tinha uma importância que ia muito além do episódio em si. Ele representava, de forma dramática, o "retrocesso das instituições públicas criadas por São Paulo no processo de modernização do Brasil".
O tamanho do rombo é estarrecedor até em termos mundiais e para nenhum japonês ou americano botar defeito. Com os prejuízos que não cessaram de crescer desde a intervenção aproximando-se dos US$ 20 bilhões, o buraco do Banespa supera com juros (é a palavra apropriada) as quebras do Continental Illinois, de Chicago, em 1982 (US$ 2,5 bilhões), do BCCI, em 1991 (US$ 9,5 bilhões), e do Crédit Lyonnais, neste ano (US$ 13 bilhões).
Três vezes maior que a bancarrota da cidade de Nova York em 1975, o rombo do Banespa poderia ser descrito, sem exagero, como a mais desastrosa quebra bancária da recente história financeira do mundo.
Mais do que tudo isso, porém, o que particularmente chocou a Norman foi a relativa indiferença com que os setores dirigentes da comunidade assistiram a um descalabro previsível e previsto, ao desfecho de uma espécie de "crônica de uma morte anunciada".
Daí seu impulso para organizar a conferência internacional que o Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial realizou nesta semana, a fim de chamar a atenção para o problema da falência das instituições públicas de São Paulo e buscar-lhe soluções exequíveis.
Com a ajuda de personalidades que lidaram com situações semelhantes em Nova York, Liverpool ou Tóquio, as complicações paulistas foram estudadas como caso particular de um desafio maior: o de administrar eficientemente sociedades de escala e complexidade cada vez mais gigantescas.
É aqui que se nota com clareza como, a partir de um certo nível, os aumentos quantitativos se convertem em mudanças qualitativas para pior.
Um exemplo chocante foi o do colapso do sistema de saúde pública da Rússia, que provocou aumento de 41% da mortalidade desde 1991 e significativa redução da expectativa de vida adulta.
O mesmo fenômeno começa a manifestar-se no Brasil com o aumento, pela primeira vez neste século, da mortalidade adulta, em consequência do crescimento da violência no Rio e em São Paulo.
Os homicídios, a Aids e os acidentes de trânsito assumem proporções epidêmicas. No município de São Paulo, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes cresceu, para a faixa etária entre 15 e 19 anos, de 49 em 1980 para 196 em 1991.
Se lançarmos o olhar à periferia, a situação é catastrófica. Em Santo Amaro, por exemplo, a taxa de homicídios na faixa de 15 a 29 anos foi, em 1993, no caso dos homens, de 313 por 100 mil habitantes, número espantoso, poucas vezes encontrado em qualquer ponto do mundo.
Um estudo da mortalidade de Santo Amaro encomendado pelo Instituto Braudel mostra que, no sexo masculino, a perda em expectativa de vida para as pessoas de 15 anos entre 1979-81 e 1990-92 foi de 5,5 anos.
Esses dois extremos -a quebra da maior instituição financeira do Estado, de um lado, e o colapso do sistema público de saúde e de segurança, do outro- estão ligados por um fio unificador: a incapacidade e o fracasso do governo, tanto em cumprir suas funções clássicas e indelegáveis -educação, saúde, segurança-, como as tarefas impróprias, que nunca deveria ter assumido -gerir bancos e empresas.
A chave para enfrentar o problema é uma política de regeneração do setor público, a qual, em São Paulo ou Nova York, deve conter os seguintes elementos: (1) equilíbrio financeiro; (2) transparência e credibilidade da ação governamental; (3) estímulo à cooperação entre os líderes políticos, empresariais e comunitários; (4) políticas sociais eficazes e responsáveis; (5) retomada dos investimentos públicos; (6) apoio externo.
Alguns desses elementos começaram a estar presentes, com mais força talvez no Rio de Janeiro do que em São Paulo. No Rio, a descoberta brutal de que a violência não poupa os ricos nem fica confinada aos morros acabou por sacudir a complacência e falta de reação organizada que ainda dominam, em parte, a atitude das classes médias paulistas.
Como se viu na passeata Reage Rio, as autoridades ficam inquietas quando o povo finalmente se mobiliza e sai às ruas.
Inquietam-se porque sabem que só fatos extremamente graves fazem com que o povo dispense os instrumentos tradicionais de mediação do sistema político -eleições, partidos, assembléias- para cobrar diretamente das autoridades as respostas que esperam. E, se essas respostas tardarem, ou forem insatisfatórias, quem sabe a forma que poderá assumir a cobrança pública?
Conforme está indicando o estudo do Instituto Braudel, as soluções existem, foram provadas em outros países e estão ao alcance da vontade.
A fim de pô-las em prática na obra de regeneração de São Paulo, não é preciso nem é conveniente esperar que uma explosão de sofrimento e revolta obrigue o povo a descer às ruas.

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