São Paulo, sábado, 2 de dezembro de 1995
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Cresce silêncio no mundo que fala português

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

"Quando eu morrer, não quero choro nem vela, / quero uma fita amarela/ gravada com o nome dela".
Peço ao desenhista que vai ilustrar este artigo, que coloque no desenho a fita amarela com a qual os semimortos do mundo de fala portuguesa dizem adeus a um querido membro da família: uma fita amarela onde se leia "Moçambique". Esse país da África Austral, o mais pobre do mundo, foi tão ignorado e esnobado por seus irmãos ricos, ou pelo menos remediados, como Portugal e Brasil, que se mudou com armas, bagagens e dicionário para a Comunidade das Nações Britânicas. Aliás, desde a independência -que Moçambique conquistou de Portugal em 1975- uma separação como esta era previsível. A ligação mais forte de Moçambique com o resto do mundo passou a ser feita por intermédio da vizinha África do Sul, hoje governada por Nelson Mandela. Moçambique era ajudado e cortejado (devido às suas reservas naturais) não só pela Comunidade Britânica como pela França, a Alemanha, a Suécia. Acaba, agora, de se integrar à Commonwealth.
O Brasil só soube disto depois do fato acontecido e não lhe deu importância nenhuma. Eu, pessoalmente, confesso que só me dei conta de que havíamos perdido, na família, um dos que falam nossa língua, lendo domingo no "Jornal do Brasil" uma correspondência enviada de Lisboa por Norma Couri, "Moçambique dá adeus ao passado português". Na dita correspondência não é sequer mencionado o embaixador que acho que ainda temos por lá, de nome Itamar Franco. Lembrado é o nome do ex-embaixador José Aparecido de Oliveira, que, há dois anos, "acompanhou uma delegação de empresários brasileiros à capital de Moçambique, Maputo, que se chamou Lourenço Marques até a independência. Aparecido tentava sensibilizar o Brasil para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) que teria salvo Moçambique da escolha da língua oficial -na verdade uma questão de sobrevivência. Reunidos semana passada em Lisboa os embaixadores da CPLP lamentaram não terem se antecipado. Hoje, dos 17 milhões de moçambicanos, só 2 milhões falam português. Contra esta adesão (ao inglês como língua oficial) ficou o maior escritor moçambicano, Mia Couto, publicado no Brasil". Em vão. Porque como bem diz Joaquim Chissano, o atual presidente de Moçambique, não é tão importante assim guardar a inútil lusofonia do país. Diz Chissano: "Mais do que herança cultural o que me preocupa é a pobreza do meu país".
Vasco da Gama chegou a Moçambique em 1498. Nos "Lusíadas", canto segundo, Camões teme, durante o desembarque, algum traiçoeiro ataque moçambicano. No entanto, lido como se estivesse escrevendo hoje, Camões parece estar, isto sim, adivinhando a má administração que Portugal vai infligir a Moçambique, com o melancólico desfecho de agora: "E que incautos pagassem desse jeito / o mal que em Moçambique tinham feito".
Moçambique é de fato o país mais desvalido entre todos. Vive-se, ali, até os 48 anos, a renda per capita não chega a US$ 100. Durante os intermináveis anos de guerra civil entre os direitistas e os então marxista-leninistas de Chissano, "a média de filhos por mulher moçambicana chegou a sete, sendo que três morriam, dois ficavam aleijados, um adoecia e sempre sobrava um", informa Norma Couri. Durante os 16 anos que durou o horror dessa guerra, Moçambique não viu praticamente qualquer sinal de amor ou solidariedade oriundos de Portugal ou do Brasil.
Já que citamos no início dois poetas, o Rosa e o Luiz, acrescentemos, agora, o Raimundo: "Vai-se a primeira pomba despertada.../ Vai-se outra mais... mais outra..." A imagem parnasiana do pombal de Raimundo Correia é bem apropriada para descrever a debandada que ocorre entre os que falam português, a frieza e o desamor que reina entre eles. Tanto Lisboa como Brasília se preocupam o tempo todo com a ortografia da língua e a alteram sempre que possível. Mas quem vai usar essa língua no mundo se os povos que a falam vivem de costas uns para os outros e nem percebem, na velha casa em que se criaram juntos, se alguém parte para nunca mais voltar, como faz Moçambique agora?
Nos velhos tempos dos descobrimentos e da colonização disputávamos um lugar no mundo com os outros ibéricos, com a Espanha que chegou a de fato dominar Portugal e o Brasil de 1580 a 1640. Mas só hoje em dia, quando os dois países estão longe das glórias de outrora, é que vemos se expandir o espanhol, enquanto se contrai o português. O espanhol é falado cada dia mais no país que o Brasil mais inveja e imita, os Estados Unidos, enquanto o português começa a não ser mais ouvido sequer na antiga África Portuguesa. Isto num momento em que Portugal, assustado, treme de medo de não ver garantido seu minúsculo lugar numa Europa que praticamente o ignora.
Há pouco tempo, compondo por sua conta e risco mas com alta seriedade, o cânon da literatura ocidental, Harold Bloom nele incluiu pelo menos um autor de língua portuguesa, Fernando Pessoa. Pois Pessoa, estou certo, se ainda fosse vivo teria derramado uma lágrima com o abandono do idioma em Moçambique. Algumas lágrimas, aliás, uma por cada heterônimo. Pessoa viveu sua infância na África do Sul, formou sua sensibilidade lusitana como filho que era do cônsul de Portugal em Durban, antigo Porto Natal, na África do Sul. Foi, de certa forma, um menino português colonizador, ouvindo as ainda submissas línguas africanas e o troar crescente do idioma inglês. Os versos que escreveu Pessoa inspirados na saga dos descobrimentos figuram entre os mais belos que nos deixou. Ele agora perguntaria: quem os ouvirá, dentro de algum tempo, se continuarem abandonando o próprio idioma aqueles que dentro dele nasceram?
Nós, os brasileiros como os portugueses, sabemos perfeitamente o que deveríamos fazer para estancar essa sangria desatada. Teríamos que socorrer -isto é, dar o que comer e ensinar a ler e escrever-, aos que falam a língua portuguesa no mundo inteiro. Não podemos mais permitir que, no Brasil como em Portugal, aqueles poucos que possuem a terra e a governam, continuem tratando o povo como no tempo dos descobrimentos e da escravidão. A persistirmos em nossa indiferença e egoísmo, acabaremos mergulhando numa espécie de silêncio cultural. Continuaremos a usar entre nós, como um dialeto tribal, o português, mas cada vez mais transformando a corrente do que pensamos e dizemos no humilde afluente de algum rio maior. Como acaba de fazer Moçambique.
Hulk
Estudando a situação econômico-social dos países latino-americanos, a revista "Time" que está nas bancas chama o enorme Brasil de "The Incredible Hulk". Trata-se do Hulk que acabou de derrubar Graziano.

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