São Paulo, sábado, 2 de dezembro de 1995
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"Vou te contar o que está acontecendo"

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Fale baixo. Vou te contar o que está acontecendo. Preciso da sua ajuda para sair dessa. Você será bem recompensado."
Essa era a fala que Chico Buarque estava decorando para representar um personagem que pensava ser Chico Buarque, no filme "Ed Morte procura Silva", do cineasta Alain Fresnot.
A entrevista, exclusiva para a Folha, foi realizada entre um set e outro, dentro de um trailer, estacionado numa rua que desemboca no largo de Pinheiros, em São Paulo.
Satisfeito com o resultado final, Chico Buarque comentou, sob vários ângulos, o processo de criação de "Benjamim", seu segundo romance que estará nas livrarias na semana que vem.
É difícil resumir em poucas linhas o enredo de "Benjamim". Não porque seja uma obra difícil ou hermética, muito pelo contrário, é dotado de humor e sua leitura se faz de uma forma até mais fluente do que "Estorvo".
A complexidade está nas inúmeras variantes que a história apresenta. Mas, em linhas gerais, a história está centrada em Benjamim Zambraia, um modelo fotográfico quase aposentado. Como o próprio nome do personagem principal sugere, ele se constitui no elemento de ligação entre os diferentes triângulos amorosos que se entrelaçam ao longo da narrativa.
Mesmo reconhecendo que viveu momentos de impasse e várias vezes chegou a jogar fora uma semana de trabalho, Chico pode tranquilamente se dirigir ao leitor, utilizando a mesma fala do personagem que interpretou no set de filmagem: "Fale Baixo. Vou te contar o que está acontecendo e preciso de sua ajuda para sair dessa. Você será bem recompensado".
*
RELEITURA
Comecei a escrever o livro enquanto fazia alguns shows. Talvez, por isso, ele só tenha adquirido empunhadura no terceiro capítulo, quando pude ficar totalmente recluso. Ao chegar no final do quinto capítulo, reescrevi os dois primeiros. Tenho a sensação de que mais reli do que escrevi.
A história se passa em sete semanas. O tempo da narrativa pode ser calculado pelo intervalo entre os sete capítulos, todos correspondem ao espaço de uma semana.
PRIMEIROS LEITORES
Não tinha certeza de que conseguiria escrever o livro. Só mostrei para alguém quando estava na metade do sexto capítulo. Os primeiros leitores foram a Marieta, minha filha Sílvia e o Luiz Schwarcz.
O Rubem Fonseca só leu quando eu estava escrevendo o último capítulo, o livro praticamente pronto. Ao contrário de "Estorvo", para o qual fez uma série de sugestões, com "Benjamim" não propôs nenhuma alteração.Como insisti em saber se não tinha nenhum reparo, ele disse: "Você quer mesmo saber? Acho o sobrenome do Alyandro, Escarlate, muito alegórico". Eu gostava e esbocei uma explicação. Então ele voltou a carga: "Para dizer a verdade, esse sobrenome é uma merda". Mudei para Aliandro Sgaratti.
AS CIDADES
Gosto de desenhar cidades, ficar imaginando. Mas, quando escrevo, minhas cidades são sempre plágios do Rio de Janeiro.
CONDIÇÃO DE ESCRITOR
O primeiro livro podia dar a impressão de um acidente. Já o segundo, permite comparações com o anterior, determina uma trajetória, delineia o universo literário do escritor.
A questão de ser ou não ser escritor, sinceramente, não me preocupa. Senti prazer em escrever este livro. As coisas aconteceram na hora certa. A impressão que tenho é a de que compus todas as músicas para poder escrever esses dois livros.
BENJAMIN
Ele só nasceu como personagem quando viu Ariela no Bar-Restaurante Vasconcelos. Sua existência projeta-se entre premonições e flash-backs. Ele já sabia tudo que ia acontecer. É a inexorabilidade do seu destino. Imaginei seu rosto semelhante ao de Chet Baker.
NOMES
Procurei evitar certo realismo. Inventei uma série de nomes. Pelo menos pensei que tivesse inventado, muitas vezes tive de mudar, porque a realidade me desmentia. Benjamim inicialmente se chamava Augusto Melântonio. Pensei que não existia. Conversando com o Luiz Schwarcz ele me disse que se lembrava de ter cursado uma escola de datilografia e empostação de voz com este nome. Depois, abriu a lista telefônica e encontrou mais de oito Melântonios.
Outro dia, com o livro já escrito, abri a Folha numa seção que normalmente não leio, a de anúncios fúnebres, e, pra minha surpresa encontrei um "Sgaratti".
PARÁGRAFOS
No momento em que sento para escrever me aborrece a obrigação de ter de contar uma história. Sinto como se houvesse a cada parágrafo uma quebra, um buraco entre um parágrafo e outro. Me atrapalha. Me divirto mais quando não sei o que vai acontecer.
GEOMETRIA
O realismo de muitas das minhas descrições corresponde ao que em arquitetura se chama de geometria descritiva ou GD. Utilizo esse procedimento, por exemplo, na cena final, quando descrevo, por intermédio de Benjamim, a porta tombamdo no assoalho do sobrado onde se encontravam o Professor e Castana Beatriz: 'À poeira assenta na sala vazia, e Benjamim vê a porta deitada sobre as tábuas do assoalho, e vê o chão da casa como a fachada de uma casa sepulta".
REALISMO
Combino em algumas passagens o máximo de realismo com uma sensação intensa de delírio, como se a observação fosse uma faculdade imaginativa. No último capítulo, há uma cena em que Ariela suspeita que o helicóptero no qual Alyandro Sgaratti viaja vai cair no precipício. De início, minha idéia era descrever o helicóptero ganhando altura. Conversando com um primo que trabalha numa companhia de aviação, perguntando como eram os heliportos, ele sem querer me deu um a informação nova, "você sabe, quando o aparelho decola do alto de um edifício, inicialmente, perde um pouco de altura". Aproveitei este dado e construí a cena de modo que Ariela, ao ver o aparelho ultrapassar o terraço, o imaginasse despencando no vácuo. Mas, ao se aproximar da borda do terraço Ariela "vê o helicóptero que paira uns cinco andares abaixo com o nariz reclinado, ascender em linha oblíqua sobre a cidade".
PEDRA DO ELEFANTE
Esse capítulo saiu um pouco do mesmo núcleo que gerou a música "Morro Dois Irmãos": como se a rocha dilatada fosse uma concentração de tempos. Não há nenhum enigma, nenhum estranhamento. As pedras no Rio de Janeiro fazem parte da paisagem, é algo muito concreto, eu moro rodeado de pedras.
Agora é claro que há algo premonitório quando digo que o destino de Benjamim está vinculado a Pedra. Inclusive neste sentido a mobilidade da Ariela se opõe fortemente a imobilidade do Benjamim. Quando ela entra no apartamento dele, evita olhar para Pedra, sente o cheiro da Pedra em Benjamim.
Insisti nessa idéia quando mudei "o rosto empedernido" para "rosto escalavrado" só para reaproveitar esse adjetivo empedernido -que muita gente não lembra que vem de pedra e significa petrificado-, no último capítulo quando Benjamim "à saída do quarto fita Ariela, empedernido". Isso para mostrar a repulsa que ela sente, Benjamim não só cheira a pedra, como a sua imobilidade é insuportável para Ariela.
INTENÇÃO
A linguagem conduz a história. Parece uma construção poética. Parece uma palavra que você escolhe e de repente encontra uma rima lá adiante. Você não havia previsto, a primeira palavra aparece solta, mas a segunda já parece um jogo de armar. Uma estranha combinação entre acaso e intencionalidade. Sendo que não havia de início essa intencionalidade. Não armei tudo direitinho.
FLAUBERT
Nesse período li apenas as "Cartas" do Flaubert. Era uma espécie de consolo. Ele pensava escrever "Madame Bovary" no prazo de um ano, levou seis. Enquanto eu lia, pensava, um século depois ele ia economizar anos de sofrimento. Ele merecia um computador.
Em outros momentos representava um consolo para mim. Na medida em que Flaubert dizia que aquilo tudo era um exercício, eu pensava, se não servir para nada, pelo menos serve como exercício.
HUMOR
Ele está mais presente em Benjamim. Não se trata de um humor negro. Meu humor tende a ser escurinho. Cortei muita coisa que poderia ficar engraçada. Minha preocupação foi oposta, não queria ser engraçado. Mas achava que deveria haver um humor atravessando todo o livro.
PROFISSÕES
Quando comecei a escrever, certos assuntos não estavam em evidência. O fato de Benjamim ser modelo fotográfico não tem nenhuma relação com a presença de modelos nas telenovelas, até mesmo porque se trata de um anti-modelo, de um modelo envelhecido e quase aposentando. O mesmo pode ser dito do pastor-político, Aliandro Sgaratti. Não há nenhuma relação com fatos recentes ou com a televisão. Jamais escolheria a profissão dos personagens movido por este propósito. Evitaria exatamente por ser um assunto da atualidade. Por exemplo, quando estava terminando o romance, a discussão sobre os desaparecidos políticos começou a ser ventilada insistentemente na imprensa e, em função da história, isso me incomodou profudamente. Não quis abordar a realidade brasileira.
DIFERENÇAS
Eu tinha medo de "Benjamim" ser uma continuação de "Estorvo". Me coloquei algumas condições: fugir da primeira pessoa, dar nomes aos personagens, tentei outro tempo verbal. Esse último, foi o único do qual não consegui me libertar totalmente.
CONEXÃO "ESTORVO"
Alguns personagens de "Estorvo" reaparecem em "Benjamim". Esse é o caso do pastor Azéa: "O zelador do edifício não perde um programa do pastor Azéa, muito menos agora que é pela televisão. E também da rádio Primazia: "A Índia responde à Rádio Primazia (....)"

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