São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Relatório do breve descanso

JANIO DE FREITAS

Um país cujo governo o imagina nas fronteiras do Primeiro Mundo tem, para aferir a dimensão e o gênero da sua importância, o instrumento fácil dos noticiários internacionais. Em quantidade de notícias encontradas sobre o Brasil, durante um mês de férias asiáticas e africanas, minha sempre afirmada confiança nesse governo saiu um tanto frustrada. Três notícias em todo o período não fazem, convenhamos, média estimulante. Já sobre a qualidade das notícias e conceitos, cada leitor fará o seu julgamento.
A primeira presença brasileira me caiu nas mãos sob a forma de um glorioso alto de página do "Business Times", editado na Cingapura, em que me limitei a testemunhar a discriminação primitiva contra os fumantes no aeroporto mastodôntico. Lá estava na manchete: "Estados Unidos, 927.896, França, 600.052, Brasil, 572.999". Os números referiam-se a dólares. Mais precisamente, à média, em dólares, do ganho anual de diretores de empresas em 22 países, segundo levantamento de uma empresa americana especializada.
Ainda hoje, mal contenho a empolgação de ver os diretores brasileiros à frente dos seus congêneres da Suíça, do Japão, da Alemanha, da Itália, da Holanda, de todos os tigres asiáticos. Ah, esses pobretões, escória econômica e vergonha social do planeta. Em comparação com 94, vários deles até pioraram a remuneração dos diretores de suas empresas. Mas no Brasil, o jornal fez a justiça de registrar, os ganhos dos diretores brasileiros cresceram 14,8%. A par dessa, o jornal fez outra justiça: nada mencionou sobre os salários da população, nada sobre aposentadorias e pensões, nada sobre concentração de renda.
A outra presença do Brasil não foi em espaço menos glorioso: em noticiário de TV internacional, uma reportagem sobre o valor (já uma força de expressão, vê-se) das aposentadorias brasileiras, motivada por uma manifestação de aposentados ali exibida para o mundo. Uma frase da reportagem bastará para mostrar por que não quero me ocupar do que foi dito: "O governo não se preocupa com os aposentados. Ou com suas queixas". O último encontro com o Brasil deu-se também pela TV, em rápida referência a um tal Diunin-ô, mas conhecido entre nós por Juninho. E assim pude ver quanto o Brasil está próximo de ser país com a importância de Primeiro Mundo.
Está visto que voltei antes da oportunidade de ver o amplo noticiário internacional merecido pelas aventuras telefônicas da íntegra equipe presidencial. Mas, a bem da verdade, fui forçado a me lembrar muito do Brasil na África do Sul. Em parte, nem tanto do Brasil mesmo, mas por causa de outra nação: a nação rubro-negra, que os sul-africanos nos lembram por não esquecerem de um 6 a O que o Flamengo de tempos mais flamengos, ou seja, sem Romário e sem Kleber Leite, aplicou no campeão de lá. De outra parte, porque agora é o próprio país África do Sul que está dando de muitos no Brasil.
Na maior parte de suas histórias, esses dois países tiveram percursos bastante semelhantes, às vezes paralelos mesmos. Um, pelas reações ao seu regime de discriminação racial, o outro pela degeneração administrativa -ambos, portanto, pela ação de suas elites-, entraram os dois em crise progressiva. Não me ocupei de observar o país, tinha objetivos mais limitados, mas o salto da África do Sul para a ressurreição entra pelos olhos e ouvidos. Os problemas não se extinguiram de uma hora para outra, é claro, muitos lá estão bem visíveis. As elites opressoras afinal fizeram, porém, a necessária concessão à lucidez reclamada por seu próprio futuro e pelo país. O esforço de pacificação racial, que inclui necessariamente a prioridade administrativa para medidas de justiça social, é uma bela realidade. E passados apenas ano e meio do primeiro ato concreto dessa disposição -a eleição do ex-oprimido Nelson Mandela para a Presidência da República- os efeitos da lucidez são espantosos. O país lembra o Brasil do desenvolvimentismo. Tudo o que o boicote econômico transformara em negócios desastrosos encontra lucros crescentes, os investimentos estrangeiros acorrem em massa, o turismo explode. Nasce uma nova África do Sul.
E então voltei ao velho Brasil.

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