São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Papai Noel morreu...

ROBERTO CAMPOS

Pelo menos desde Roma, quando o Estado assumiu o encargo de sustentar com "pão e circo" a plebe que não produzia e se reproduzia ("proletário" vem de "fazedor de prole"), o problema continuou o mesmo: como atender reivindicações que passam muito dos recursos disponíveis? E tirar recursos de quem, para dar a quem e por quê?
Até o século passado havia bastante noção de que os recursos eram escassos, e a religião encarecia as virtudes da caridade. Até que apareceu um filósofo alemão, Marx, que detestava trabalhar para ganhar a vida, e descobriu o truque perfeito: liquidar a propriedade privada dos meios de produção e então haveria fartura e lazer para todos...
Alguns países, a começar pela Alemanha, começaram a puxar para o Estado aposentadorias, pensões e formas diversas de assistência, mais tarde o seguro-desemprego, e outras responsabilidades sociais, que dificilmente seriam bem geridas apenas por meios privados. Meio século depois, Keynes imaginou uma fórmula que logo se tornaria popularíssima entre os governos: para acabar com a recessão e o desemprego, bastava "estimular a demanda agregada". E para puxar o freio da inflação, era só inverter a marcha. Nada poderia alegrar mais os políticos do que fazer dos gastos públicos uma virtude salvadora, ao contrário das idéias antigas dos sacrifícios da frugalidade e da poupança. Parecia, afinal, justificado o "Estado do Bem-Estar Social".
Mas, como água de morro abaixo, fogo de morro acima e gravidez, é muito difícil parar no meio. Mesmo nas democracias mais sólidas, nos Estados Unidos, na Inglaterra, e nos países do Centro-Norte da Europa, começou a ficar claro que é mais fácil dar o dinheiro dos outros do que contar com o senso de responsabilidade dos beneficiários. Dinheiro alheio é abstração...
Todos os países passaram a ter os mesmos problemas básicos, embora, naturalmente, varie o seu tempero local. Em resumo, consistem no seguinte: 1) os programas tendem a aumentar indefinidamente; 2) os custos sobem ininterruptamente; 3) a relação custos/benefícios é cada vez mais desfavorável, exigindo grande aumento de recursos para cada pequeno aumento de resultados; 4) generaliza-se a burocratização da vida, a ineficiência e o descaso pelos dinheiros públicos; 5) infecciona-se a sociedade com a "cultura da dependência", a noção de ganhar sem fazer força.
Por algum tempo, o público ficou anestesiado pelo mito socialista de que o problema era distribuir o dinheiro dos ricos para os pobres. Mas, aos poucos, sobretudo com a crise dos anos 70, a classe média começou a perceber que essa extração não funcionava, e que ela é que estava pagando as mordomias burocráticas e os luxos demagógicos dos políticos. Começou a questionar-se se a dependência não estava gerando uma sociedade sem-vergonha.
Nos Estados Unidos, a opinião pública descobriu, perplexa, que já se estava na terceira geração de dependentes da assistência pública, sobretudo em virtude da desestruturação das famílias. Nos centros favelizados das cidades, mais de 80% das crianças vivem em famílias sem o pai, e mais de 50% das famílias dependem da assistência pública. Nove e meio milhões de menores recebem assistência, meio milhão são abandonados. E como o Estado é perdulário, eles custam, cada um, US$ 35 mil a US$ 59 mil por ano. Para os negros, cuja efetiva igualdade legal data de pouco mais de uma geração, as cifras ainda são piores: 70% das mulheres têm filhos fora do casamento, e são negros 45% dos presos no país. A dependência alimenta o ressentimento e deteriora os valores.
Quem assiste televisão já ouviu falar que está havendo um terremoto político nos Estados Unidos. Os republicanos -que, pelo estereótipo, são os "conservadores"- obtiveram o controle do Congresso americano, que os democratas detinham há mais de 40 anos. Liderados por Newt Gingrich, estão procurando cortar as enxúndias do Estado.
Há uma convergência à primeira vista inverossímil. De um lado, a "maioria silenciosa" apoiando o líder republicano Newt Gingrich, disposto a acabar com os déficits públicos, os abusos dos programas assistenciais e o intervencionismo estatal (só os custos da regulamentação são estimados em US$ 500 bilhões!). Do outro lado, o duro líder negro Farrakhan, que prega uma polarização extremada dos negros americanos, ao ponto do separatismo, e promoveu a formidável marcha de 1 milhão de negros com uma mensagem estranhamente parecida: os negros devem parar de pôr as culpas na sociedade, de se achar vítimas, porque quem os assalta e mata, quem lhes passa drogas e deixa famílias destruídas são predominantemente outros negros. O apelo à responsabilidade moral de cada indivíduo surge, assim, como a mensagem comum da maioria e da minoria historicamente adversárias!
Com a distribuição de "intitulamentos -direitos a subvenções, assistência etc.-, as pressões sobre o orçamento cresceram, desde 1972, a uma taxa duas vezes superior à do PIB americano. A dívida do país passou de US$ 436 milhões a mais de US$ 4 trilhões, e os programas de saúde e pensões, de 24% a 40% do orçamento.
O problema afeta, aliás, a generalidade dos países industrializados, que estão sendo forçados, pela inevitável limitação dos recursos, a rever as ilusões do "Estado do Bem-Estar Social". Todos estão hoje em crise. Tudo parecia fácil, na prosperidade do após-guerra. Mas, no final da década passada, os gastos sociais já atingiam uns 18% do PIB nos Estados Unidos e no Japão, 25% na Grã-Bretanha e de 30% a 40% na Alemanha, nos Países Baixos, na Dinamarca e na Suécia. O impacto sobre a folha de salários das contribuições de empregados e empregadores foi aumentando, ao ponto de que só 30% a 40% chegavam diretamente ao bolso do trabalhador (56% nos Estados Unidos). Mas quanto, e onde cortar? O aumento do limite da idade da aposentadoria (para 65 anos, ou 70 anos), a extensão até 40 anos do tempo de contribuição, a redução dos benefícios trabalhistas, da cobertura médica e de gastos assistenciais vêm sendo propostos. Hoje, nos países industrializados, há quatro a sete trabalhadores ativos para cada inativo. Em 30 anos, porém, haverá dois ocupados pagando por inativo.
O desemprego (fora dos Estados Unidos e do Japão) é alto, em torno de 10%. Problema em parte estrutural, mas também em parte devido ao engessamento do mercado pela legislação trabalhista e por excessos regulatórios que não passam de defesas corporativas. Percebe-se por que os sindicatos (livres!) se esvaziam. Sua função reivindicatória de tirar do empregador tudo o que pudessem, relíquia do começo do capitalismo industrial, está hoje em grande parte obsoleta.
Papai Noel é o sonho impossível do "Estado Providencial". Os políticos só teriam de escrever bilhetinhos com os pedidos da garotada, mesmo com má ortografia, e colocá-los nos sapatos. Mais cedo ou mais tarde, se topa com o limite dos recursos. A Suécia é uma perfeita ilustração. Parecia uma casa de bonecas bem arrumadinha. Teve de engrenar marcha atrás em 1991. O excesso de impostos e a perda de estímulo haviam reduzido a poupança dos indivíduos a "menos" de 5% da sua renda líquida, quando no resto da Europa era de "mais" 10%.
Nenhuma sociedade estará livre do complexo problema de esticar recursos escassos entre os muitos fins alternativos desejáveis. As que preservam os valores da responsabilidade individual e as velhas virtudes de esforço, poupança e persistência terão condições morais para dosar sacrifícios e compensações. As outras descobrirão que o Estado é um pai terrível... e falido.

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