São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Dilemas líricos

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Sobre Corpos e Ganas", de Dois Santos dos Santos, chegou as minhas mãos por meio do poeta gaúcho Dilan Camargo. Recomendação corroborada pelo elogioso prefácio do ficcionista Charles Kiefer, no qual somos informados que o crítico e poeta Armindo Trevisan também gostou.
Outros pontos comuns poderiam ser arrolados, por exemplo, o motivo baudelairiano cristalizado na figura da "passante" e revisitado por Vinicius. Em "Sobre Corpos e Ganas" sempre cruzamos com essa mulher "que vem e que passa": "Uma mulher/ caminhando na rua/ atravessada pelo sol da tarde". Às vezes, o motivo central se desdobra num secundário, como a "saia": "Se a mulher caminhava/ a saia dela/ se abria e se fechava" ou "acender o mundo/ apenas/ como uma saia de seda da Índia".
A influência de Vinicius não é problemática para Dois Santos, pois, ao dedicar-lhe um poema, assume conscientemente esta filiação. Os problemas começam quando o autor não consegue evitar certos lugares-comuns do discurso masculino. Esse é um dos pontos críticos do livro, pois a própria linguagem poética está vinculada a este discurso: "Um homem que nunca tenha sussurrado/ nenhum palavrão/ no ouvido de uma mulher/ não sabe o que é um poema".
São clichês que reforçam visões estereotipadas da mulher, seja ela uma adolescente -"Deliciosa mistura de malícia e inocência/ (às vezes na aparência)/ a adolescente passa/ e deixa um cheirinho bom de carne nova"- ou uma mulher de 30 a 40 anos. Para piorar, no final do livro, emerge a desgastada dualidade: musa e puta.
Não deixa de ser curioso que, apesar da experiência libertária dos 60 e da desordem amorosa dos últimos anos, para muitos poetas a dimensão do feminino ainda continue presa a imagens tradicionais. Penso que não se deve generalizar, já que este problema não afeta a poesia brasileira contemporânea em seu conjunto. Pelo contrário, autores como Cacaso, Armando Freitas Filho ou Paulo Henriques Britto encontraram boas soluções.
A grande contribuição, porém, veio da esfera feminina, com a consagração de Adélia Prado e Ana Cristina César. Entre as revelações, chama a atenção o erotismo neo-barroco de Josely V. Baptista -"Ar" (Iluminuras, 1991) e "Corpografia" (Iluminuras, 1992)-, e a sensualidade plástica de Cláudia Roquette-Pinto, "Os Dias Gagos" (RJ, Ed. da Autora, 1991) e "Saxífraga" (RJ, Salamandra, 1993). Diante deste erotismo reescrito pelas mulheres, é possível escrever como Dois Santos? O poeta não deveria acolher dentro do seu canto essa outra voz?
No Brasil, ainda nos faz falta uma reflexão como a "Dupla Chama: Amor e Erotismo", de Octavio Paz, ou um ensaísmo provocativo como o "Que Saiba Abrir a Porta para Ir Brincar", de Julio Cortázar. Uma reflexão que nos lembre que o erotismo implica necessariamente a presença do outro, é transgressão e reconciliação, palavra acasalada na imagem.
A mulher de "Sobre Corpos e Ganas", ao contrário dos desenhos de Gelson Radaelli, não participa de um sistema de relações, não está exposta à iluminação do encontro, nem ao arco da cópula. O paradoxo dessa poesia amorosa não estaria em reconhecer que, apesar de cantada em versos, a mulher "é mais que um poema"?

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