São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Universos paralelos

Tolkien inaugura com 'O Hobbit' saga de aventuras

JOSÉ J. VEIGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem ainda não faz parte da imensa FULJRRT, ou seja, Fraternidade Universal dos Leitores de John Ronald Reuel Tolkien, tem agora esplêndida oportunidade de se filiar. O meio de ingresso é "O Hobbit", o primeiro livro que Tolkien publicou (em 1937, quando tinha 45 anos e seus filhos eram pequenos).
Tolkien era professor de língua e literatura inglesa do Merton College de Oxford. Escreveu o livro para os filhos, vidrados em histórias de aventuras. Depois vieram "The Fellowship of the Ring" ("A Fraternidade do Anel", 1954), "The Two Towers" (As Duas Torres", 1955) e a trilogia "The Return of the Ring" ("O Retorno do Anel"), sob o título geral de "The Lord of the Rings" ("O Senhor dos Anéis").
Começando com "O Hobbit", Tolkien criou geografias, povos, entes, lendas, civilizações, tudo preenchido com acontecimentos e aventuras engendrados e conduzidos por uma imaginação poderosa. "O Hobbit" é um livro-ímã, que agarra o leitor desde a primeira frase e não o larga nem quando acaba, porque a vítima enfeitiçada fica pensando no que leu e querendo mais. É esse querer mais que liga a fraternidade dos leitores de Tolkien.
"O Hobbit" é um livro cheio de travessuras. Exemplo: "O anão Urctouro arrancou a cabeça do rei Golfindel com uma porretada, a cabeça voou uns cem metros e foi cair numa toca de coelho. Assim a batalha foi vencida e ao mesmo tempo foi inventado o jogo de golfe".
E há também advertências para o leitor. Exemplo: "Os dragões não acabaram depois da morte do temível Smaug". "Apenas mudaram de forma e de nome, o que é muito próprio deles. Sempre haverá dragões no mundo". E: "Se mais de nós déssemos mais valor à comida, bebida e música do que a tesouros, o mundo seria mais alegre".
Depois de muitas aventuras ora arrepiantes ora divertidas para a recuperação de um tesouro incalculável, o hobbit consegue voltar para casa. Mas logo antes de entrar tem grande aborrecimento -vê gente desconhecida entrando e saindo sem nem sequer limpar os pés no capacho! E a consideração que merecia da comunidade? Aí o mago Gandalf, que o ajudara no que pôde na ida e na volta da longa expedição à Montanha Solitária, o traz à realidade: "Você é apenas uma pessoinha neste mundo enorme".
Então o hobbit passa a escrever poesia. Como o Cândido, de Voltaire, que passara a cuidar do jardim depois de muito sofrer e aprender por longes terras.
Aproveitem o convite do hobbit e entrem vocês também para a Fraternidade Universal dos Leitores de J.R.R. Tolkien, que não se arrependerão. É um livro para ficar ao lado do de Cervantes, dos de Homero, das "Mil e Uma Noites" e do "Decameron".
Uma curiosidade. Como não há personagens femininos, será que os hobbits, os orcs, os wargs, os elfos se reproduzem por cissiparidade?
A tradução só não é excelente por dois motivos. Os tradutores desprezaram duas vantagens que a língua portuguesa tem sobre outras: os sufixos diminutivos e os verbos ser (para indicar estados permanentes) e estar (para situações transitórias). A cada passo encontramos "pequeno barco", "pequena espada", "pequeno riacho", "pequena toca", "pequeno colchão", etc. etc.
E, quando um personagem morre no tempo do romance ou morreu antes, ele quase que sistematicamente apenas "está morto". No caso do dragão, isso pode ser perigoso. "Smaug" está morto!, grita alguém anunciando a notícia longamente desejada. Ora, sendo os dragões criaturas finórias, vamos que esse perceba a brecha deixada pela impropriedade do verbo e resolva deixar de estar morto? Mais seguro seria anunciar que Smaug morreu. Assim ele ficaria definitivamente morto.

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