São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Um passeio no jardim sexológico

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Falta um pouco de Fellini na psicanálise". A frase revela a preocupação ética, humanista, por trás da reflexão do psicanalista e ensaísta Jurandir Freire Costa.
"A Face e o Verso", seu mais novo livro, tem um alvo preciso: provar que o conceito de homossexualidade fazia parte do vocabulário sexológico (e sexista) do século 19, legitimando a discriminação e chegando a contaminar a obra freudiana.
Ele nega, porém, o sentido herético de seu livro. Utilizando a teoria do neopragmatismo linguístico (leia texto na página ao lado), Jurandir Freire Costa afirma que a psicanálise fornece os melhores instrumentos para dissecar os mecanismos que forjam a subjetividade e seus conflitos -incluindo-se aí as incongruências da própria teoria criada por Freud.
Leia, a seguir, entrevista que Jurandir Freire Costa concedeu à Folha, via fax, do Rio de Janeiro.

Folha - É possível continuar praticando a psicanálise depois de ter abdicado da descrição dos mecanismos de formação da sexualidade?
Jurandir Freire Costa - A expressão "mecanismos da sexualidade" pode ter dois sentidos. No primeiro, sexualidade é igual às manifestações clínicas da sexualidade presentes nas fantasias, sintomas, atos falhos, sonhos, desejos, condutas etc. dos adultos e crianças; no segundo, sexualidade é sinônimo de teoria sobre o que nos leva a reconhecer em todos estes fenômenos heterogêneos a presença de uma mesma coisa chamada "sexualidade".
Ora, não penso que possa abrir mão do primeiro sentido da sexualidade, pois ele corresponde àquilo que, efetivamente, são as realidades psíquicas ou linguísticas que formam o sujeito e seus conflitos.
Quanto ao segundo sentido, seu valor teórico depende da "feiticeira metapsicológica" escolhida. Neste caso, prefiro a idéia neopragmática, que nega a existência de qualquer referente fixo ou "realidade essencial da sexualidade" e permite dizer que sexo é tudo o que a prática linguística dominante nos ensina a usar corretamente com este sentido.
Esta idéia, que procurei justificar neste e em outros estudos, compatibiliza a noção de "sexualidade historicamente construída" com a noção psicanalítica do sujeito, sem riscos de incongruência.
Folha - Mas aqueles mecanismos não seriam invariantes estruturais da teoria?
Costa - Na perspectiva neopragmática, universal, invariante ou estrutural -no sentido forte do estruturalismo antropológico ou linguístico- são termos de uma visão de mundo ou do sujeito que pretende conhecer, fora da história, os incondicionais que condicionam as possibilidades de todo conhecimento empírico.
Esta hipótese é contestada por autores como Wittgenstein, Austin, Quine, Davidson, Derrida, Sellars, Rorty etc., que afirmam a precedência da linguagem corrente na delimitação dos termos constitutivos das abstrações teóricas.
Em vez de dizer que a "éidade" (essência) da interdição do incesto é ou exibe a "estrutura universal do parentesco", a pergunta neopragmática seria: qual interdição? Qual incesto? A interdição do incesto nas famílias dos faraós é a mesma nas famílias das classes médias carioca ou paulistana? Se é, o que garante que fatos dispersos no tempo e no espaço tenham a mesma identidade semântica? É uma "mesma realidade essencial" ou é um acordo prático, ético, na extensão dos conceitos, de modo a englobar faraós, malandros e executivos, no mesmo espaço familiar do que conhecemos por "interdição" e "incesto"?
Quem de nós pensaria em guardar os universais de Aristóteles e Platão, ou os universais de Gustave Le Bon e Gobineau? Podemos perfeitamente praticar psicanálise com conceitos heurísticos, operacionais, sem a obsessão dos invariantes e dos universais, que são apenas tentativa de imortalizar vocabulários mortais.
Quando e se o neopragmatismo não nos for mais útil na tarefa de descrever o sujeito moral de acordo com nossos princípios éticos, dispensemos o neopragmatismo! Nenhuma catástrofe humana ou teórica vai ocorrer.
Folha - Em seu livro, a opção pelo termo "homoerótico" (em lugar de homossexual) é uma postura politicamente correta?
Costa - Antes de mais nada, insisto em dizer que os defensores da "política identitária" ou "política de minorias" divergem nas premissas e argumentos que fundam suas posições.
Concordo com alguns destes argumentos, em especial com o que mostra a importância política da rediscussão dos direitos jurídicos dos indivíduos discriminados.
Mas não creio que a discriminação sexual possa ser resolvida se persistirmos valorizando a idéia de que "identidades sexuais" têm ou devem ter muita importância para nossa vida moral.
Nenhum indivíduo preconceituoso renuncia aos seus preconceitos porque mostramos, racionalmente, a estupidez de suas crenças, sobretudo se continuamos levando a sério os fundamentos destas crenças. Exigir "consideração sexual" ou "racial" significa reafirmar o valor cultural das idéias racistas e sexistas.
A arma contra o preconceito é a ironia, o sarcasmo, a crítica, o descrédito, a surpresa e o desprezo por tudo que lhe dá suporte, junto com a proposta de pensar em experimentos morais alternativos para nossas relações afetivas, amorosas, sentimentais, amigáveis etc., onde o sexo seja coadjuvante e não ator principal.
Folha - Apesar de afirmar que uma categoria como "homossexualismo" pode ser abandonada, o senhor reconhece que Freud insistia no tema. A "redescrição" da psicanálise não seria uma tentativa de fazer Freud falar contra Freud?
Costa - Sim, mas, fazendo isto, fiz o que qualquer psicanalista faz quando privilegia certos conceitos de Freud para ilustrar tal ou qual fato clínico ou afirmação teórica. Sinceramente, não vejo nada de antifreudiano em mostrar que Freud deu múltiplas interpretações da dinâmica da "homossexualidade" e que elas, muitas vezes, são incoerentes e desiguais.
Apenas mostrei que Freud, ao falar de homossexualidade, oscilava entre o vocabulário das ideologias sexológicas oitocentistas e a terminologia que ele próprio inventou, muito mais rica, complexa e sofisticada para dar conta da pluralidade das inclinações sexuais humanas.
Folha - Sua descrição das sucessivas mutações dos conceitos freudianos não seria uma forma de historicizar a psicanálise, transformando-a num preâmbulo do neopragmatismo?
Costa - Freud não precisou de Austin, Wittgenstein, Quine ou Davidson para criar sua teoria do sujeito como pluralidade identificatória e conflitiva, ou sua teoria da causalidade inconsciente de algumas de nossas condutas.
O neopragmatismo só me interessa porque disponho da teoria psicanalítica do sujeito. Mas, de fato, acredito que a melhor descrição do sujeito é a que afirma que a vida mental é a soma dos atos de fala, pensamentos, rede de crenças, desejos, intenções e aspirações características de nossas subjetividades.
Em suma, quanto mais deixarmos de lado a idéia de Linguagem e pensarmos mais que somos -como diz Collins- "self less persons", relés orgânicos e linguísticos articulados a outras teias de linguagens e ao ambiente físico, mais seremos capazes de entender como nossos valores, opiniões, desejos etc. dependem da variabilidade dos contextos e formas de vida que nos constituem.
Creio que isso é importante para nossa vida ética. Quando pensamos assim, mais facilmente admitimos que o que nos faz sofrer hoje pode fazer outros no futuro rirem e vice-versa. Falta um pouco de Fellini na psicanálise, daquela benevolência generosa, divertida e terna para com os que nascem "entre urina e fezes", como Freud fez questão de dizer.
Folha - Como fica a sessão de análise após o abandono da categoria da homossexualidade? Uma prática regular não pressupõe universais teóricos?
Costa - No essencial, a sessão permanece inalterada: atenção flutuante, livre associação, transferência e interpretação. Abandonando a categoria da homossexualidade, podemos analisar a "realidade linguística da homossexualidade", criada pelo imaginário ideológico do preconceito, com a mesma liberdade que Freud teve, por exemplo, de analisar as "histerias" sem o constrangimento das idéias de Charcot, Liebault, Berhaim.
Folha - Em que o imaginário que cerca a Aids influenciou seu trabalho teórico?
Costa - Sem dúvida, a tragédia da Aids, conjugada aos movimentos políticos das minorias americanas, foi fator importantíssimo na rediscussão dos estereótipos preconceituosos que temos sobre a sexualidade.
A Aids trouxe à tona não só a violência cometida contra pessoas que foram e são moralmente discriminadas pelo simples fato de amarem e sentirem atraídas por outras do mesmo sexo, como também mostrou como estamos convertidos a um etos sexual e sentimental que se tornou um beco sem saída, pois concebido por um mundo que se foi e que está tentando se manter vivo no que sempre teve de pior.
Ou seja, jogamos fora os tabus da falida ética conjugal, patriarcal, familiar e monogâmica; mas mantivemos o "Totem do Sexo" e o mau hábito de criar "jardins sexológicos" povoados de "seres sexuais", assim como criamos jardins botânicos e zoológicos.

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