São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Outras Margens

Pensamento alterou rumos da crítica e da teoria

LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 10/12/95
Diferentemente do que foi publicado à pág. 5-4 ( Mais!) de 3/12, além de professor da Pontifícia Universidade Católica-SP, Zeljko Loparic é professor titular de filosofia da Universidade de Campinas. A obra reproduzida à pág. 5-6 é de autoria de Mark Tansey e o texto "Mistérios do Além", de Richard Rorty, publicado à pág. 5-7, foi traduzido por Samuel Titan Jr.
A obra de Jacques Derrida exerceu uma grande influência na teoria e na crítica literárias das últimas três décadas. Desde a publicação de "A Escritura e a Diferença" e "Da Gramatologia", em 1967, até o presente momento, suas propostas têm tido uma repercussão internacional, sob o nome de desconstrução (ou desconstrucionismo). Que essa repercussão tenha por vezes assumido formas imprevistas ou mesmo indesejadas pelo filósofo, isso é apenas parte do efeito Derrida.
Para tratar dos efeitos da desconstrução nos estudos literários, convém lembrar alguns pontos dessa proposta, que serão aqui forçosamente simplificados. A desconstrução nasceu na área filosófica, mas não é exclusivamente filosófica, nem mesmo filosófica no sentido tradicional da filosofia. Não é um sistema nem um método. É uma prática de leitura crítica e, em Derrida, uma escritura dessa leitura. Talvez convenha falar dessa prática como o faz o próprio Derrida, que a designa como "aquilo que foi chamado de desconstrução", evitando transformá-la em sistema conceitual, método ou grupo homogêneo de pensadores, o que é contrário a seus propósitos.
A desconstrução é uma leitura crítica dos textos filosóficos e literários (cujas fronteiras genéricas ela contesta), uma "estratégia geral, teórica e sistemática" ("Positions") de decomposição dos discursos, revelando seus pressupostos, suas ambiguidades, contradições e não-ditos. Essa leitura crítica visa à subversão da metafísica ocidental (isto é, toda a tradição filosófica de Platão a Hegel, e além), apontada como logocêntrica e dominadora. Ela tem suas raízes filosóficas em Kant, Nietzsche e Heidegger. Mas, com sua obstinação ou seu cuidado em descobrir contradições e paradoxos, ela desconstrói muitos aspectos desses discursos que lhe são afins.
O discurso de Derrida nunca é totalmente contra aqueles que ele descontrói. Ele não trabalha com o sim ou o não, porque esse dualismo supõe o conceito de verdade e visa, na dialética hegeliana, a unificação final dos opostos num saber absoluto. Daí a multiplicação, em seu estilo, das expressões "por um lado... por outro...." Mas não se trata absolutamente de ficar na indefinição. Trata-se de um trabalho no interior dos discursos metafísicos ocidentais (todos o são, em certa medida, inclusive o discurso desconstrucionista, porque a metafísica habita nossas línguas), uma "prática vigilante" que os desestabiliza, deslocando seus limites.
A estratégia desconstrucionista consiste em residir nesses discursos para os submeter a uma interrogação que, não sendo teleológica, é interminável. Uma dialética sem síntese final, se é que nesse caso ainda se pode falar em dialética. A ambivalência, a duplicidade, a dubiedade são constantes na teoria desconstrucionista, e reconhecendo isto ela desconstrói de antemão muitas das acusações que lhe são feitas.
Em que medida essa atividade se interessa por, ou interessa à literatura? Derrida foi, desde o início, um teórico da escrita. Segundo ele, haveria nesta um suplemento e uma disseminação de sentidos que o idealismo filosófico sempre temeu e reprimiu. O idealismo privilegia a fala e a voz, como mais próximas da verdade do Ser ou da Idéia, em detrimento da escrita, considerada tradicionalmente como um simulacro diabólico, "exterior à memória, produtora não de ciência, mas de opinião, não de verdade, mas de aparência" ("La Dissémination"). A esse privilégio concedido à fala, Derrida chamou de fonocentrismo. Os filósofos idealistas consideram a fala como unívoca, associada à autoridade e à presença do sentido. O fonocentrismo está intimamente ligado ao logocentrismo. O Logos é o Pai que vigia a escrita, e os escritores desafiam esse pai.
A questão maior da desconstrução é a do sentido na linguagem. Mas "o sentido" não faz sentido para Derrida, porque falar do sentido, no singular, seria estar dentro do idealismo que ele combate. A escrita não tem sentidos unívocos; ela produz sentidos os quais, mais do que múltiplos (polissemia), são sempre relacionais, incertos e não sabidos, diferentes e diferidos. Os conceitos desconstruídos por Derrida são os de significado, verdade, ser, essência. A esses conceitos, ele opõe as noções diferência ("différance") e rastro ("trace"). A diferência é o próprio movimento do sentido, que só existe numa rede de elementos passados e futuros, numa economia de rastros.
Vê-se logo que esse tipo de leitura, crítico com relação ao discurso filosófico institucional (conceitual e logocêntrico) encontra sua confirmação mais eloquente nos textos literários. Os que lidam com a literatura, principalmente com a poesia, aceitam mais facilmente do que os filósofos a afirmação de que as obras verbais não têm um sentido único e final, mas uma significância, ou poder de criar sentidos que se renovam a cada leitura e através do tempo. Encaram a obra verbal não como reflexo do mundo, nem como resposta ao mundo, mas como pergunta sempre reformulada, ou como mentira que diz a verdade. Na teoria literária contemporânea é ponto mais ou menos pacífico que, no texto literário, é o modo de dizer (a expressão) que cria o conteúdo. E que o próprio sujeito do discurso, na literatura, é um efeito textual (o eu lírico, o narrador etc.).
Na efervescência teórica do fim dos anos 60 e início dos 70, foi Derrida quem forneceu embasamento e rigor filosófico aos teóricos da escritura e do texto. Ele foi um crítico agudo do estruturalismo linguístico e literário, quando este era o método dominante. No próprio momento em que se descobria Saussure, e em que a linguística se colocava como "ciência piloto", Derrida mostrava que o conceito linguístico de signo é "uma relíquia da metafísica".
Vários foram os teóricos e críticos literários atentos às propostas de Derrida. Roland Barthes, depois de um breve idílio com a semiologia, deu uma virada nietzschiana com "O Prazer do Texto" e ficou muito mais próximo de Derrida do que dos linguistas e semiólogos. Julia Kristeva e todo o grupo "Tel Quel" aprenderam muito com Derrida, mas demoraram mais do que este para ver que a aliança da linguística e da semiótica com o marxismo e a psicanálise esbarrava em incompatibilidades de princípios. O grupo "Tel Quel" também insistiu demasiado na idéia de ruptura, de corte, de revolução, que implicava uma visão linear e teleológica da história, evidentemente rejeitada por Derrida, que preferia falar em "deslocamento dos limites do fechamento ('clôture')".
Os nomes e as teorias desses intelectuais franceses bastam para mostrar como aquilo que se chamou de "estruturalismo francês" dos anos 60-70 foi muito mais complexo do que se diz, e como o termo pós-estruturalismo (muito usado nos Estados Unidos) é passível de desconstrução (porque supõe uma história linear, porque pretende unificar sob a mesma denominação um momento de grandes debates internos).
O grande êxito da desconstrução nos Estados Unidos se deve, em parte, a certas afinidades com o close reading do New Criticism. A retomada de algumas propostas da estética kantiana, dos teóricos do romantismo alemão e sobretudo de Nietzsche via Heidegger (jogo, vontade de potência, aliança ou identificação da poesia com a filosofia, reflexões sobre e prática das figuras retóricas, proposta de uma crítica-escritura etc.) é muito rentável, na crítica literária, para os textos do romantismo até os dias de hoje. Sua aplicação a textos anteriores já é discutível. Não por acaso, a maioria das análises dos desconstrucionistas norte-americanos (de Man, Hartmann, Hillis Miller) incide sobre a poesia romântica e as principais referências literárias de Derrida são Mallarmé, Lautréamont, Joyce, Blanchot, Artaud e outros modernos.
Por essa adequação do objeto literário da modernidade a seus pressupostos e propósitos, o desconstrutivismo franco-americano desenvolveu-se na área literária mais do que na filosófica. Na área que ainda se defende como especificamente filosófica, a aceitação da postura desconstrucionista é muito mais polêmica. Nas áreas política e sociológica, os ataques a Derrida e à desconstrução foram violentos, e nem sempre respeitosos daquilo que de fato o filósofo escreveu. As acusações mais frequentemente dirigidas a Derrida e aos desconstrucionistas são as de "anistoricismo", "descontextualização" e "niilismo". A exploração, nos anos 80, do passado pró-nazista de Heidegger e de Paul de Man, veio pôr água na fervura. A resposta de Derrida foi dada em "Heidegger, la Question" (1987) e em "Mémoires Pour Paul de Man" (1988). Considerando que o discurso é inseparável da vontade de potência, e que desfazer as tramas do discurso é uma atividade ética, Derrida afirma que "a desconstrução" não é um assunto discursivo e teórico, mas prático-político ("Carte Postale").
A contribuição da desconstrução para a crítica literária foi a consciência de seus pressupostos filosóficos, um aguçamento do senso crítico com relação aos textos, um afiamento dos instrumentos de leitura e um estímulo à criatividade escritural. A crítica desconstrucionista permitiu o ultrapassamento do formalismo tecnicista que começava a dominar nas universidades como "método científico".
Mas a desconstrução, por suas próprias premissas, tende a chegar a aporias. Como falar de crítica se já em 72 Derrida se perguntava se a crítica literária não estaria presa ao "mimetologismo metafísico", e se o próprio projeto de um krinein (julgamento) não estaria minado pela postulação da diferência, do descentramento, e pelos próprios textos literários da modernidade ("La Dissémination")? De fato, como propor uma crítica desprovida do conceito de verdade e de uma hierarquia de valores consensuais? A partir de que Centro (recusado, desconstruído) ela se enunciaria?
Além disso, se se leva ao extremo a opacidade e a disseminação do sentido, na leitura das obras literárias, assume-se o risco de declará-las ilegíveis, como o fazem De Man e Hillis Miller, na esteira de Schlegel, que já no século 18 desafiava o racionalismo das Luzes em "Sobre a Incompreensibilidade". Ou o risco de projetar nelas sentidos que estão apenas no leitor, desconhecendo aqueles limites que Barthes colocou ao falar da validade da crítica ("Crítica e Verdade"), e caindo naquilo que Umberto Eco chama de overinterpretation. Se a literatura, por sua própria natureza, condena o crítico a uma certa cegueira, permitindo-lhe apenas vislumbres, por que uma leitura se consideraria mais lúcida (já que um desconstrucionista jamais diria "mais autorizada") do que outra? "Blindness and Insight é o título de um dos livros de Paul de Man. É preciso entretanto lembrar que o próprio Derrida, ao propor a leitura-escritura como jogo, alertava para os limites do mesmo: "Não terá entendido nada do jogo aquele que se sentir autorizado a extrapolar, a acrescentar coisas a esmo" ("La Dissémination").
Outra grande contribuição de Derrida e dos desconstrucionistas foi a de abalar a dominação do Centro, de liberar assim as "margens" (que, sem centro, seriam melhor ditas as diferenças), sejam elas as formas não-canônicas da literatura (paródia, pastiche etc.) ou as expressões particulares de literaturas antes marginalizadas por situação geográfica ou opressão ideológica. A desconstrução abriu caminho para os estudos de literaturas emergentes ou de grupos minoritários, desembocando no grande êxito atual dos cultural studies e na contestação do cânone ocidental.
Sem dúvida, isso foi uma abertura revolucionária nos estudos literários, como ideologia democrática e não-preconceituosa. Mas simplificada e banalizada nos cultural studies, a desconstrução chega a novos paradoxos. O questionamento dos valores estéticos em que se baseia o cânone ocidental acabou levando à valorização das obras por critérios exclusivamente ideológicos, por seus conteúdos "politicamente corretos". Além disso, a proposta anárquica (no sentido de oposta à dominação) desembocou na criação de novas disciplinas institucionais (estudos feministas, negros, gays, chicanos) que tomaram o poder em várias universidades americanas, oprimindo e suprimindo as anteriores. Desconstrucionistas como Hillis Miller dedicam-se agora à reflexão sobre as vantagens e perigos dos cultural studies, sobre o impacto da informática na cultura e sobre as mutações sociais e políticas decorrentes dessas novas tendências ("Illustration", 1992).
A teorização da pós-modernidade também deve muito à desconstrução. Mas a maioria das práticas estéticas pós-modernas apenas se aproveita de algumas propostas da desconstrução para aplicá-las sem nenhuma crítica, numa espécie de brincadeira em que vale tudo. A negação da história linear resulta em mera colagem de anacronismos, a contestação do Centro desemboca num multiculturalismo neoliberal e ainda etnocêntrico. Em vez de proceder, como Derrida, a um deslocamento crítico e sistemático dos limites do logocentrismo, a pós-modernidade se contenta com as contestações epidérmicas, e se compraz nas aporias da desconstrução.
As incidências da desconstrução na teoria e na prática literária contemporâneas são inegáveis, e as questões por ela suscitadas continuam em aberto, provocando controvérsias. Não é isso a prova de sua renovada atualidade?

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