São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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O fim do mito da inocência

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há quase 30 anos Jacques Derrida, depois de "A Escritura e a Diferença", publicava a "Gramatologia", livro notável em que, partindo de uma releitura de Rousseau e Lévi-Strauss, ele propunha uma interpretação radicalmente nova do pensamento ocidental.
A tese principal desse primeiro Derrida é que, ao contrário do que se imagina, a cultura ocidental privilegia a fala em detrimento da escrita. Assim, aqueles textos que a um leitor desavisado parecem criticar uma tradição livresca, de escrita, acabam sendo na verdade os mais fiéis à verdadeira tradição européia. E o grande exemplo que temos é Rousseau.
Sabemos que Rousseau é um crítico incansável de todas as formas de representação. Na política, ela afasta os governantes dos governados. Já na linguagem, a representação ocorre sobretudo na escrita; ela distancia os homens. E a melhor ilustração disso está no fato de que com os modernos acabou o debate público da política (que existia entre os gregos). Sem consultar o povo, os governos baixam decretos, mandando imprimi-los. A escrita estabelece hierarquias.
Se condena a escrita, Rousseau elogia a fala. Ela aproxima os homens. Para falar é preciso estar perto do outro. A fala tem as virtudes da presença (mas é claro que em nosso século, desde que se passa a gravar a fala, ela assume os traços -e vícios- da escrita). Daí que sempre seja possível checar a fala, evitar que o falante "derrape" para o engano, o logro, a manipulação. Com ela, a transparência é possível nas relações humanas.
Com a escrita, não. O mais grave para Rousseau nem sequer são as inflexões que deixamos de perceber (por exemplo, se a frase escrita "Mande-me dinheiro" é uma súplica ou uma ordem), mas o fato de que a escrita limita radicalmente a possibilidade de resposta. Ela, como a propriedade, institui a desigualdade entre os homens. Com isso ela sustenta o poder hierárquico e, pior ainda, a mentira e mesmo o mal.
Tudo, nessa crítica, parece original e até libertário. Ora, o que faz Derrida? Primeiro, mostra que Lévi-Strauss segue Rousseau quase ao pé da letra. Até aí, nada de tão chocante -tanto que o antropólogo poderá responder, "com toda a simpatia", que afinal de contas isso não tem importância, já que para ele, Lévi-Strauss, a filosofia é um elemento entre tantos outros, que utiliza para compor seu pensamento próprio.
O significativo, porém, é Derrida mostrar que Rousseau -e Lévi-Strauss- longe de romperem com a tradição, na verdade são seus leais continuadores. Assim, em seu "A Farmácia de Platão", Derrida sustenta que já os gregos consideravam a escrita como um mal.
E o que diz o deus Amon? Que a escrita, ao contrário do que pretende seu inventor Theuth, não ajuda a memória, mas sim o esquecimento, porque nos faz depender de marcas externas para recordar. Portanto, em vez de dar sabedoria aos homens, ela os faz apreciar o que não passa de sua aparência, a "presunção de sabedoria".
No entender de Derrida, o que articula a tradição ocidental é essa desconfiança diante da escrita. Mas ela se baseia num equívoco, desmontado pela linguística moderna. Com efeito, desde Saussure, e o começo do século, sabemos que a linguagem -toda linguagem, falada ou escrita- se baseia num sistema de oposições. Assim uma palavra ou um fonema só tem sentido porque se opõe a outros; por exemplo, sei o que é "gato" porque implicitamente o distingo de "rato", "pato" etc.
Ora -simplificando-, isso quer dizer que uma fala nunca tem aquele estado ideal, rousseauniano, da presença pura. Qualquer palavra ou som, para fazer sentido, exige que o ouvinte tenha em mente um amplo sistema de outros termos, dos quais se distingue este que ele escuta no momento presente. E o que é esse sistema, senão uma escrita implícita? Assim, não existe transparência, como a sonhada por Rousseau. Não há uma presença imediata do outro a mim.
Lévi-Strauss teve nos anos 30, em Mato Grosso, a revelação fulgurante dos malefícios da escrita. Estava entre os nhambiquaras, e um cacique ambicioso quis servir de seu intermediário na entrega dos presentes que ele ia dar aos índios. Só que, na hora da entrega, o cacique, segurando uma folha de papel em branco, fingia ler nela o nome de cada índio com o respectivo presente.
Essa é a célebre "lição de escrita" que um selvagem analfabeto deu ao maior antropólogo do século, e que Lévi-Strauss imortalizou em seus "Tristes Trópicos". O cacique adivinhou que, com a escrita, entram em cena os males, a começar pela desigualdade e a dominação.
Só que o pressuposto dessa leitura é que, antes da escrita e da dominação, as relações entre os homens seriam de transparência. E se isso for apenas um mito? Se já houvesse violência entre os homens antes disso -assim como sempre houve, na linguagem, um sistema de distinções, de oposições?
Vê-se que a discussão não é só técnica. Não está em jogo apenas a análise de uma teoria linguística, ou da filosofia de Platão ou Rousseau. O que Derrida põe em cena é a idéia de que certos mitos seriam determinantes em nossa cultura. Trata-se dos mitos que apontam uma inocência primordial do homem, por exemplo como índio (o bom selvagem) ou criança (a convicção rousseauniana que Freud destruiu).
A originalidade de Derrida está em mostrar que o mito da pureza virginal, longe de se opor à tradição ocidental, na verdade constitui o seu eixo maior -ainda que quase oculto. Seu trabalho se pode aproximar, no desmonte que faz dessas ilusões, da crítica de Freud ao mito da criança inocente, crítica essa que fundou a psicanálise enquanto arte da suspeita.
Evidentemente, é possível discordar da caracterização que Derrida propõe da tradição ocidental "logo-fonocêntrica" (de um logos, razão, fundado na "phoné", fala). Mas é inegável que, desde as obras inaugurais de Derrida, certas leituras libertárias de Rousseau, da antropologia e mesmo da política tiveram denunciada a sua ingenuidade e precisaram, pelo menos, sofisticar-se. Talvez o mais rico, nesse primeiro Derrida, seja a crítica devastadora ao modelo da inocência ameaçada, que sustenta, ainda hoje, tanto de nossa prática mental e política.

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