São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Moedas mortas

A estabilização obtida até agora pelo Plano Real é uma conquista importante do governo e da sociedade. A superinflação vai aos poucos adquirindo o sabor de uma lembrança distante. Há décadas um plano não resiste tanto no Brasil. A cultura inflacionária vai recuando, como recua uma ressaca do mar.
Como nas ressacas e marés, porém, a calmaria não impede que se vejam os estragos, a herança deixada pela tormenta. Como carcaças de enormes embarcações deixadas inúteis sobre o seco, saltam à vista alguns bancos. Mas há também agricultores em dificuldades, um aumento impressionante do número de empresas falidas, níveis altos de inadimplência entre consumidores e governos estaduais em crise.
Não há almoço grátis, repetem incansavelmente os economistas. A vitória sobre a inflação tem custos. E há os derrotados, desempregados e excluídos que não são todos "incompetentes". São realmente vítimas do que se supõe seja uma guerra em que a maioria vencerá.
Se já é penoso aceitar que haja tantos derrotados e humilhados no momento mesmo em que se proclama a vitória contra um mal maior, talvez ainda mais difícil seja escolher aqueles que ainda está em tempo resgatar.
A decisão está ao alcance do governo. Escolha política, sujeita ao princípio de salvaguardar a estabilidade. Escolha dramática: quanto maior a generosidade, maior o risco de pôr a perder o que se conquistou. Esse tipo de dilema não é exclusivo a esse plano ou ao Brasil. A unificação alemã é um exemplo eloquente de resgate socioeconômico de grandes proporções.
Ao incluir na unificação uma regra de conversão monetária reconhecendo paridade à moeda oriental, o banco central alemão abandonou um princípio de décadas, pétreo, de absoluto rigor no controle da emissão de moeda. Hoje muitos consideram que as dificuldades impostas nos últimos anos ao conjunto da comunidade européia no seu processo de unificação têm como origem última a decisão, política, tomada pelo Bundesbank em favor dos cidadãos orientais.
O governo brasileiro encontra-se hoje, guardadas as devidas proporções, diante de dilemas análogos. O controle sobre a inflação exige disciplina monetária, rigor fiscal e equilíbrio cambial. Mas os custos sociais, empresariais e políticos da estabilização também têm limites.
O governo conseguiu criar uma nova moeda, o real. Mas não conseguiu ainda destruir a herança maior do período inflacionário, essa outra moeda ou "quase-moeda" que são os títulos públicos girando no curtíssimo prazo a taxas de juros ainda elevadíssimas.
A primeira moeda, o real, surgiu distribuindo renda e favorecendo os mais pobres. A segunda moeda, sob a forma de dívida pública, tem apenas aprofundado a erosão do Estado e a concentração de renda que, supunha-se, eram resultado apenas da inflação.
O real prenuncia um futuro de estabilidade e progresso. A dívida pública imobiliza o governo e o próprio sistema financeiro. É evidente que a convivência entre essas duas moedas é insustentável por muito tempo. Mas é o mesmo governo que emite ambas, como se se tratasse de um ser de duas cabeças.
Se quiser decidir quem sobrevive à estabilização ou quem pode ser resgatado, o governo terá de optar pela defesa intransigente de uma, e apenas uma dessas duas moedas. A criação de uma moeda nova é relativamente fácil e, aliás, tem sido frequente. Sempre, como num passe de mágica, a inflação recua.
A destruição da moeda velha, entretanto, não ocorre espontaneamente. O que se vê como herança perversa de tantos planos, arranjos, esquemas de correção monetária e malabarismos financeiros é uma acumulação extraordinária de moedas velhas. Muitas delas, não por acaso, atualmente conhecidas como moedas "podres".
Premido pela emergência, angustiado com o que lhe pareceu ser o prenúncio de uma incontrolável crise bancária, o governo resolveu ressuscitar essas moedas mortas. Para salvar a moeda nova está convalidando moedas velhas. O governo reabilita moedas desvalorizadas para prolongar a ciranda que artificialmente fortalece a dívida.
Até quando a outra moeda, recém-nascida, suportará a convivência com essas moedas defuntas, podres e meramente especulativas, cuja validação tem pesados custos para o Tesouro Nacional?
A sociedade ainda apóia o consenso de que sacrifícios são necessários para dar vida longa a mais uma moeda que o governo criou para renovar as esperanças no futuro. Mas será a cada dia mais difícil, e logo será impossível, justificar ou dar como legítima a ressurreição de tantas moedas mortas.

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