São Paulo, domingo, 3 de dezembro de 1995
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Um dia na novela

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

As coincidências, assim como as queimaduras e os contatos com seres extraterrestres, ocorrem em variados graus.
As comuns, pequenas, acontecem todo o tempo: encontrar um casal amigo no cinema, receber uma ligação de alguém em quem pensávamos há dois minutos, o programa de Jô Soares começar às onze e meia - esta última, um tanto mais rara.
São fatos que surpreendem, mas não chocam. Em geral, apenas nos divertem.
No segundo grupo de coincidências há espécimes menos frequentes, porém mais robustos, já capazes de deixar uma pessoa menos determinista com a pulga atrás da orelha.
Em 10 de maio deste ano, inspirado por uma sessão em vídeo do filme "Frankenstein de Mary Shelley", fui à estante pegar o livro, que eu lera há tempos, e comecei a folheá-lo.
Que era uma leitura tensa, eu me lembrava, mas, dessa vez, levei um susto antes mesmo do prefácio. Na primeira página, logo abaixo do título, estava escrita a data de aquisição do livro: 10 de maio de 1985, exatamente dez anos antes. Justos, redondos, nem um dia a menos ou a mais.
"É brincadeira?", diria Gérson, canhotinha de ouro e comentarista da Rede Bandeirantes. Fiquei atônito com a coincidência, mas, como de hábito nessas ocasiões, corri para a barra da saia da estatística.
A chance de abrir um livro pela segunda vez, exatos dez anos depois da primeira, sempre existira; talvez até fosse calculável. E, no limite, tudo o que pode acontecer, acaba acontecendo: essa foi comigo.
Apesar de simplezinho, como diria o "Alô, você" Fernando Vanucci, esse raciocínio é geralmente eficaz na cura de certos incômodos do racionalismo: é uma espécie de "emplastro Sabiá" intelectual.
Contudo, nem ele torna aceitável o terceiro grupo de coincidências: estas se encontram no território do absurdo, além até do que Jack Palance, no "Acredite se Quiser", denomina "o estranho, o bizarro, o inesperado".
São as coincidências múltiplas, entrelaçadas, elevadas ao quadrado, tão raras na vida real que a maioria das pessoas passa por este mundo sem notícia de uma delas.
Há, porém, pelo menos um gênero de ficção onde elas proliferam como fungos, tendo a missão de pôr em contato pessoas estranhas, distantes e incompatíveis.
Em "Explode Coração", na Globo, a cigana Dara, filha de Lola, quem sabe neta de Outorgara e bisneta de Cedera, está jururu. Quer falar com alguém sobre sua angústia, sem, no entanto, ouvir comentários, objeções ou mesmo palavras de incentivo. Resolve acessar pela Internet um país onde ninguém entenda sua língua.
Entre os cento e tantos países onde não se entende lhufas de português, ela escolhe justo o Japão. Justo Tóquio, justo um hotel, justo o quarto ocupado por Julio Falcão, famoso empresário e ex-deputado brasileiro, justo na hora em que este chega da rua. Falam-se várias vezes, mas ele não revela sua identidade.
Julio volta ao Brasil. No caminho entre o aeroporto e sua casa, o carro pára em um sinal vermelho. Ora veja: Dara está parada junto a esse mesmíssimo sinal, esperando para atravessar a rua. Ela reconhece Julio "enquanto" deputado; cumprimentam-se, trocam olhares interessados.
Desnecessário comentar o quanto são improváveis esses fatos. Em vez disso, transcrevo um ilustrativo trecho do "Memorial de Aires", de Machado de Assis, no qual o protagonista se refere a uma coincidência, bem menor que as de "Explode Coração", acontecida com amigos:
"Há na vida simetrias inesperadas...." "Se isto fosse novela algum crítico tacharia de inverossímil o acordo de fatos, mas já lá dizia o poeta que a verdade pode ser às vezes inverossímil."

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