São Paulo, terça-feira, 5 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Diário de Henry Mencken chega ao Brasil

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Henry Louis Mencken. Lembra-se dele? Jornalista, crítico, filólogo, editor. Nascido (1880) e morto (1956) na mesma cidade (Baltimore, Maryland), foi a maior influência jornalística e intelectual na América dos anos 20 e 30. Mestre de Edmund Wilson, padrinho literário de Sinclair Lewis, Theodore Dreiser, Eugene O'Neill, Ben Hecht e outros, através dele os americanos descobriram Bernard Shaw, Nietzsche, Joseph Conrad, James Joyce. E se modernizaram.
Sua reputação como polemista desconhece rivais neste século. Arrasava com tudo que lhe parecia idiota e cretino, ridicularizou escritores, políticos e a burguesia (ou "booboisie", como preferia) americana. Os cristãos fundamentalistas também sofreram o diabo em suas mãos, sempre afoitas para desdenhar os poderes da fé, que definia como uma crença ilógica na ocorrência do improvável.
Cético em relação a quase tudo, duvidava dos méritos da democracia ("É a arte e a ciência de administrar o circo a partir da jaula dos macacos"), desconfiava de qualquer autoridade ("Todo homem decente deve se envergonhar do governo sob o qual vive") e considerava o patriotismo uma abominação ("Todo artista de alguma dignidade é contra seu próprio país. Pense em Dante, Tolstoi, Shakespeare, Rabelais, Cervantes, Swift e Mark Twain".)
Cometeu injustiças. Seu ódio ao presidente Roosevelt e ao New Deal era, se não descabido, exagerado. Algumas de suas críticas ao liberalismo da época poderiam ser postas na boca dos republicanos que atualmente azucrinam o governo Bill Clinton.
Conservador em mais outras questões, acabou envolvido, postumamente, em controvérsias que até na seção de cartas do "The New York Times" produziu crateras. Tudo começou quando os mais preciosos dos seus guardados (um diário e um esboço de autobiografia) foram enfim liberados à curiosidade pública na década passada. O diário, originalmente datilografado em 2.000 páginas e mantido num cofre por ordem de Mencken, escandalizou diversos leitores politicamente corretos, que em suas páginas detectaram observações racistas e anti-semitas.
A autobiografia, que apenas cobre as duas primeiras décadas do século e chegou às livrarias há dois anos, com o título de "My Life as Author and Editor", não causou danos à reputação do polemista.
O jornalista e historiador William Manchester, que privou da amizade de Mencken, encerrou o bate-boca provocado pelo diário, provando com dados irrefutáveis que o "leão de Baltimore" não era nem racista nem anti-semita. "No máximo, paternalista em relação aos negros", escreveu Manchester no "The New York Times". Lembrou os jornalistas e escritores negros ajudados por ele, deu detalhes sobre seu relacionamento generoso com as duas empregadas de sua casa e sua estreita amizade com intelectuais judeus, entre os quais George Jean Nathan, crítico de teatro e parceiro de Mencken na revista "Smart Set. Alfred Knopf", o editor de Mancken, também era judeu.
Traduzir no Brasil "O Diário de H.L. Mencken", como acaba de fazer a Bertrand Brasil, talvez seja uma temeridade. Afinal são poucos os que conhecem a obra do polemista americano -restrita nas livrarias à seleta de textos ("O Livro de Insultos de H.L. Mencken") organizada por Ruy Castro em 88- e é de se supor que apenas uma parte deles se interesse pelas miudezas do seu cotidiano. A estes, um aviso: nada de especialmente palpitante aflora nas 574 páginas do diário, na maioria das vezes ocupadas por gente desconhecida até mesmo pelos aficionados que Mencken amealhou aqui.
Se você conhece ou pelo menos já ouviu falar em Sinclair Lewis, Theodore Dreiser, George Jean Nathan e Harold Ross, compre o livro (R$ 43,00) e o leia "comme il faut", isto é, seletivamente, saltando as passagens que lhe soem irrelevantes. Mas não se deixe guiar exclusivamente pelos protagonistas de cada relato. Algumas das histórias mais curiosas são estreladas por personagens obscuros, mas identificados pelo organizador do volume, Charles A. Fecher, em miniverbetes de rodapé.
Cobrindo um período de 18 anos, de novembro de 1930 a novembro de 1948, o diário pega o jornalista no topo da fama (um de seus melhores livros, "Treatise on the Gods", foi publicado em 1930) e da felicidade conjugal (casou-se no mesmo ano com Sara Haardt, escritora do Alabama, que morreria em 1935), acompanhando-o até a derrocada de 1948, quando um derrame cerebral o impediu de ler e escrever.
Nesses 18 anos, Mencken frequentou um bocado de reuniões sociais com elenco vip (numa delas havia até Gershwin), comeu tartaruga à beça, driblou a Lei Seca, aturou e fugiu de bêbados (Lewis, Dreiser, Faulkner, F. Scott Fitzgerald, citando os mais famosos), ouviu música ("Uísque não combina com Bach". A música dele pede uma bebida de cevada), assustou-se com o sucesso popular do rádio ("Ainda vai tomar o lugar do jornal por dirigir suas mensagens às pessoas mais estúpidas), esnobou a televisão ("Não pagaria 10 centavos por uma hora de tal entretenimento, mesmo que mostrasse um massacre") e visitou na prisão gângsteres (Al Capone) e poetas (Ezra Pound).
Em suma, teve a vida que o seu talento merecia.

Texto Anterior: Filmes brasileiros concorrem no Festival Internacional de Havana
Próximo Texto: Autor anotou impressões sobre escritores
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.