São Paulo, terça-feira, 5 de dezembro de 1995
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Ensino atravessado

ANDRÉ LARA RESENDE

Richard Feynman foi um tipo extraordinário. Prêmio Nobel de física pelo seu trabalho com partículas subatômicas, Feynman era um gênio que deixou sua marca em todos os campos da física moderna. Obcecado com a originalidade, sempre pensou a partir dos princípios elementares e esteve disposto a explorar idéias aparentemente tolas até se convencer, por conta própria, de que estavam equivocadas.
Um matemático, seu colega em Cornell, disse que existem dois tipos de gênios: os comuns e os mágicos. Um gênio comum é alguém que é como nós seríamos se fôssemos várias vezes mais inteligentes do que somos. Não há mistério na forma com que pensam; apenas pensam melhor.
Os mágicos são diferentes. Seus pensamentos seguem caminhos incompreensíveis para nós, comuns dos mortais. Mesmo depois de termos entendido o que fizeram, continuamos incapazes de compreender como o fizeram. Feynman era um mágico do mais alto calibre.
Sua personalidade excêntrica e cativante o transformou num mito entre os colegas no mundo da física. Muito antes de um publicitário esperto bolar o comercial da Brastemp, dizia-se a propósito de um jovem físico promissor: "Ele não é nenhum Feynman, mas...". Um grupo de estudantes chegou a promover um seminário cujo tema era: "Será que Feynman é humano?"
Feynman nunca escreveu diretamente nada. Alguns livros de teoria que levam seu nome como autor apareceram nos anos 60. São na realidade versões ligeiramente revistas de notas de aula de alunos e colegas.
Dois livros, transcritos de gravações de relatos de suas aventuras e observações, foram originalmente publicados há uns dez anos. Com títulos irreverentes, "Surely You're Joking, Mr. Feynman!" e "What Do You Care What Other People Think?", para surpresa do editor se tornaram best sellers.
No primeiro deles, num capítulo intitulado "O Americano, Outra Vez", assim mesmo, em português no original, Feynman conta as experiências e as impressões de sua passagem pelo Brasil. Durante um ano, no início da década de 50, deu aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O título do capítulo não se refere a suas atividades acadêmicas, mas a de membro da bateria de uma escola de samba chamada "Os Farsantes de Copacabana". No início, Feynman andou atravessando e o diretor da bateria interrompia o ensaio com a frase que dá nome ao capítulo brasileiro.
Pois se Feynman atravessou no samba, suas observações sobre a universidade e o ensino no Brasil são implacáveis.
Os estudantes -os melhores tinham sido selecionados para assistir às suas aulas- eram capazes de recitar a Lei de Brewster, definir triboluminescência, mas não tinham a mais vaga idéia de como seus conhecimentos se aplicavam à realidade. Pura decoreba de palavras que não lhes significavam nada.
Já vou longe e não cheguei ao que queria dizer. Feynman acabou aprendendo a tocar a frigideira e foi para a linha de frente da bateria da escola de samba.
Quando vejo o vestibular de hoje desconfio que, em matéria de escolas que não sejam de samba, infelizmente, continuamos a desafinar.

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