São Paulo, terça-feira, 5 de dezembro de 1995
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Ordem sem progresso

FÁBIO KONDER COMPARATO

A instauração da democracia depende basicamente de boas instituições políticas e de uma mentalidade social aberta aos valores de liberdade, igualdade e solidariedade. No Brasil não temos nem uma coisa nem outra, mas o trabalho mais urgente consiste em educar as novas gerações para a superação do espírito conservador, que nos domina desde os tempos coloniais.
Em que consiste, exatamente, o conservadorismo brasileiro? Em 1884, ao assistir ao fracasso de mais uma tentativa abolicionista por meio de lei -a Assembléia Geral derrubara o ministério Dantas, porque ousara propor a alforria de todos os escravos maiores de 60 anos, sem indenização-, Joaquim Nabuco desabafou: "O ideal conservador entre nós é a estagnação no embrutecimento, o rancor no exclusivismo, o silêncio na corrupção".
Descontada a justa indignação, o que o grande tribuno certamente quis mostrar é que, para a mentalidade dominante, a injustiça social é sempre preferível à desordem, entendida esta como a possibilidade, sempre aberta numa democracia, de mudança na hierarquia social.
A nossa convicção mais profunda é de que a sociedade se divide em uma classe naturalmente governante e outra naturalmente governada e que o signo exterior dessa predestinação ao mando encontra-se na riqueza. Os homens de posses e seus auxiliares imediatos, sobretudo se consagrados pelo diploma universitário (a nossa clássica "doutorice"), gozam de uma presunção universal de competência: não são para mandados e sim para mandar, como diria o maior poeta da língua.
Para a mentalidade conservadora a lei não é uma garantia de liberdade nem um instrumento de justiça, mas unicamente uma expressão de ordem na manutenção dos mesmos centros de poder social. Toda a nossa história demonstra que é perfeitamente possível instituir as maiores injustiças num regime de superficial legalidade. Em primeiro lugar, porque as leis são interpretadas pelo Poder Judiciário, majoritariamente, segundo o esquema de valores próprio da mentalidade conservadora. Ademais, porque se as leis subordinam-se, teoricamente, aos princípios fundamentais da Constituição, a maior parte dos aplicadores do direito, entre nós, estima que as declarações constitucionais não passam de ornamentos retóricos ou vagos projetos de intenção.
Foi, aliás, o que sucedeu durante todo o período monárquico com a escravidão negra. A Constituição liberal de 1824 não a mencionava, mas, bem ao contrário, proclamava o princípio da liberdade pessoal e da igualdade de todos perante a lei.
Não obstante, juristas e magistrados seguiram raciocinando como se as normas constitucionais nada tivessem a ver com a esfera da legalidade, onde imperava soberanamente a ordem proprietária. Os exemplos são múltiplos.
Uma disposição das Ordenações Filipinas, mantidas em vigor no Brasil, embora já revogadas em Portugal, equiparava a alforria de escravos a uma doação e admitia a sua revogação, com a volta do infeliz ao cativeiro em caso de alegada ingratidão para com seu ex-senhor. Pois bem, até quase às vésperas do 13 de maio, juízes e tribunais entenderam que aquela velha e iníqua lei reinol continuava a se aplicar entre nós, como se não tivesse sido minimamente afetada pelo advento da Constituição.
A lei nº 2.040, de 1871, exigiu que todos os escravos fossem registrados (a matrícula) na repartição competente, importando o não-cumprimento dessa exigência na sua libertação de pleno direito. Os Tribunais da Relação de Ouro Preto e Recife, contudo, firmaram jurisprudência no sentido de que a ignorância da lei, pelos proprietários, serviria de escusa para impedir a libertação dos cativos não matriculados.
Quanto ao Tribunal da Bahia, num surpreendente alargamento da previsão legal, passou a entender que o simples possuidor, não-proprietário, podia matricular escravos em seu nome.
Em 1831, em cumprimento ao tratado firmado com a Inglaterra alguns anos antes, a lei declarou livres todos os escravos ingressados no território nacional a partir de sua promulgação.
Tratava-se, no entanto, de autêntica lei para inglês ver. Senadores e deputados declaravam-na letra morta e os juízes acabaram por dar-lhes razão, fazendo vista grossa sobre a colossal evidência do tráfico. Quando nova lei, esta de 1885, reafirmou a liberdade dos escravos de "filiação desconhecida", isto é, importados clandestinamente, e o Judiciário dispôs-se finalmente a aplicá-la, os senhores rurais passaram a acusar a magistratura, na imprensa, de produzir um "ataque à mão armada contra a propriedade".
Nas raras vezes em que se invocou a Constituição contra as leis, o objetivo não era defender a vida ou a liberdade, mas sim o patrimônio. Assim é que, promulgada a Lei do Ventre Livre em 1871, o maior jurisconsulto do Império, Augusto Teixeira de Freitas, entendeu-a inconstitucional por violar a garantia da propriedade e por desrespeitar os direitos adquiridos.
Seria imperdoável erro político imaginar que essa situação de bloqueio mental e de insensibilidade ética já foi superada. Embora a questão da produção agrícola e o problema agrário ponham-se hoje de forma muito diversa, apesar de os sem-terra não serem equiparáveis aos escravos de antanho e o senhorio rural ter perdido a posição hegemônica que mantinha na sociedade até este século, o fato é que o espírito conservador continua o mesmo, sólido e incontrastável, em sua visão imobilista do mundo.
Lembro, como ilustração, a jurisprudência firmada em matéria de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. Em 1969 o presidente Costa e Silva baixou o decreto-lei nº 554, que admitiu fosse a indenização em tais casos fixada pelo "valor da propriedade, declarado pelo seu titular para fins de pagamento do imposto territorial rural". Pois bem, o Supremo Tribunal Federal, que suportou sem protestar todas as violações à liberdade perpetradas pelos militares, até mesmo a aposentadoria forçada de três de seus ministros, julgou reiteradamente que essa norma de elementar bom senso violava a exigência constitucional de uma justa indenização ao proprietário expropriado.
É preciso entender que a solução, aqui como em tudo o mais, passa necessariamente pela educação, pela formação do espírito cívico dos que nos governam e nos julgam, pelo apoio, em especial, aos corajosos magistrados e membros do Ministério Público que todos os dias, anonimamente, lutam contra a suprema desordem da injustiça e da exploração humana.

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