São Paulo, terça-feira, 5 de dezembro de 1995
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Livre pensar, só pensar?

EDSON VIDIGAL

Em primeiro lugar, antes e acima de tudo, a pessoa humana. Ela é que é destinatária final de tudo o que têm a fazer todos os empregados do poder público. Para o serviço de quem, afinal, se inventou o Estado?
São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Atentar contra essas garantias é crime. Falar no telefone com quem quiser, dizendo o que bem entender, é direito individual, inerente à privacidade.
Esse direito individual, no entanto, pode ser transferido ao Estado em apoio à sua obrigação de impor a lei a favor de todos e contra o crime. Mas tão-somente quando pela escuta ou gravação for possível a obtenção de prova imprescindível à investigação criminal ou à instrução processual penal.
Para isso é preciso ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer. Ou seja, o Estado, por seus agentes, não pode ainda gravar nem escutar conversa telefônica de ninguém, mesmo que a busca da verdade mediante a obtenção da prova só indique o "grampo". Não pode porque falta uma lei; não é que falte projeto de lei. Tem projeto de lei, sim. Um aliás, de boa inspiração, leia-se Ada Pellegrini Grinover. Esse projeto, que no Senado se identificou pelo número 3.514/89, está enganchado até hoje.
Nossa Suprema Corte já proclamou que as disposições legais preexistentes quanto à escuta telefônica não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional, não valendo, portanto, invocar o Código de Telecomunicações, art. 57.
É mais fácil hoje recorrer ao "grampo" quando se quer uma prova do que obtê-la por meios legais, moralmente legítimos. Antes desses avanços tecnológicos, dessa sofisticada parafernália eletrônica, já havia Estado, portanto já havia investigação criminal e instrução processual penal. E quando se queria, não se descobria?
Que fim levaram os detetives, aqueles dedicados servidores do povo, profissionais da investigação, que trabalhavam também por gosto, que conheciam meandros, sabiam valorar pistas? Perderam-se nos rolos dos filmes policiais em preto e branco? Os que teimam em sobreviver no ofício ganham mal, não são treinados, não têm estímulos, apoios, infra-estrutura de trabalho.
Correto afirmar que a sociedade tem direito à eficácia da lei feita em seu nome para sua proteção, para garantia dos seus direitos, que a impunidade campeia além dos limites toleráveis, que há inquéritos policiais malfeitos e que, por isso, acusados escapam, que muito da instrução processual penal se perde em razão de nulidades etc., isso tudo é correto.
É preciso lembrar que, no nosso sistema constitucional, todo acusado tem direito à presunção de inocência, só podendo ser considerado culpado após o trânsito em julgado da sentença condenatória; ou seja, depois de esgotadas todas as possibilidades para o exercício de seu direito à ampla defesa.
Há frustração social sempre que os julgamentos dos acusados acontecem muito antes e fora das instâncias judiciais. Aí o grande perigo, a agressão escancarada à democracia. Pensar e dizer o que pensa, por exemplo, é direito de todos. Não só em público, muito mais em particular. Qualquer pessoa pode gravar de seu próprio telefone o que estiver conversando; o que não pode é torná-la pública, dar conhecimento a outrem sem autorização do interlocutor, que também tem direito a que ninguém viole a sua privacidade.
O limite do interesse público é o direito do cidadão que o Estado, como instrumento da vontade coletiva, tem a obrigação de assegurar. Sylvia de Pietro define melhor: "O que o poder público não pode é ir além do necessário para a satisfação do interesse público que se visa proteger; a finalidade do seu serviço não é destruir os direitos individuais, mas, ao contrário, assegurar o seu exercício, condicionando-os ao bem-estar social; só poderá reduzi-los quando em conflito com interesses maiores da coletividade e na medida estritamente necessária à consecução dos fins estatais".
Isso vale também para nós. Por isso a nossa ordem constitucional, na corrente doutrinária mais democrática, admite, em nome coletivo, ou seja do interesse público, a possibilidade excepcional da quebra, mediante ordem judicial, do sigilo das comunicações telefônicas para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal. Mas somente nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer. O Brasil tem compromissos internacionais com a proteção do direito à vida privada dos cidadãos; pode inclusive ser denunciado à Corte de Direitos Humanos.
Por que não cuidamos logo de fazer essa lei que falta? Quase duas centenas de leis ainda faltam para eficácia de inúmeras disposições constitucionais. Se para fazer cada lei dessas que ainda faltam for preciso antes um grande escândalo, convém avaliarmos logo se essa nova combalida República aguenta.

EDSON VIGIDAL, 51, é ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília).

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