São Paulo, quarta-feira, 6 de dezembro de 1995
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Lei de anistia e crimes conexos

HÉLIO BICUDO

Fábio Comparato e José Carlos Dias fizeram publicar em "Tendências/Debates" posições relativas à abrangência da Lei de Anistia. Partindo de pontos antagônicos, invocando, porém, o princípio do "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege", chega-se à conclusão de que os crimes praticados por militares ou civis, que atuavam nos órgãos de segurança do Estado, estão cobertos pelo manto da impunidade.
Estariam prescritos, restando apenas a responsabilidade civil do Estado. Permitam-me entrar no debate, pois não me parece que a questão esteja sendo posta nos devidos termos. Vejamos.
A impunidade penal ocorre pela omissão do Estado, no devido processo legal, para provar a existência do crime e de sua autoria.
Nesse sentido, pelas regras que disciplinam a prescrição, é até possível que os delitos em questão estejam prescritos, porque a prescrição deve ser reconhecida segundo os dados do processo, sem que se esqueçam as normas do direito penal que a impedem, por exemplo, enquanto não-resolvida, em outro processo, a questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime (artigo 116, I, do Código Penal). Assim, nada se pode afirmar sem que o processo seja instaurado, revelando-se o fato, suas circunstâncias e o seu autor.
Uma pergunta que sempre me fiz diante da Lei de Anistia refere-se ao entendimento de que se trata de uma lei que contempla, ao mesmo tempo, as vítimas do poder e seus algozes.
O entendimento da chamada lei de duas vias sedimentou-se durante os últimos anos do regime militar e nada tem a ver com o que se possa entender válido em hermenêutica jurídica. A lei em questão especifica claramente aqueles que se beneficiam de seus termos e ali não se faz menção, em nenhum momento, àqueles que, em nome do regime militar, torturaram e mataram.
É certo que o diploma legal estende seus efeitos àqueles que cometeram crimes conexos aos delitos políticos e define, no parágrafo 2º do artigo 1º, o que se deve entender por crimes conexos: os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
Não existe conexidade de crimes que atingem bens jurídicos diversos. No caso não se pode encontrar -aliás, é justamente o contrário que acontece- equivalência de causas entre o ato daquele que afronta o sistema político prevalente e o daquele que o reprime: um quer mudanças e atua em consequência; o outro quer manter o "status quo" e age segundo os interesses que pretende preservar.
Nos crimes conexos, um crime é pressuposto do outro. A unidade delitiva que se manifesta pela unidade do fato é o fundamento do instituto. Fora daí não existem crimes conexos, mas independentes, porque palmilham caminhos diferentes e perseguem objetivos que não se confundem.
O presidente da República, sensível aos reclamos humanitários das famílias que perderam seus filhos naquele período, se dispôs pela primeira vez nesta fase dos presidentes civis pós-ditadura -e compreendemos suas limitações- a encontrar uma solução para essa grave questão. Ressalto que não se trata de reabrir feridas ao se tentar saber onde estão sepultados os desaparecidos e a história desses desaparecimentos.
É evidente que, surgindo das informações obtidas a responsabilidade deste ou daquele, a Justiça não pode quedar-se inerte. Se ocorreu a prescrição penal, impõe-se -e aqui os dois ilustrados juristas estão de acordo- a responsabilização civil do Estado. E nenhuma lei pode impor óbices para que se alcance o objetivo apontado.
Não nos devemos impressionar com vozes adversas de civis e militares equivocados, que confundem justiça com impunidade ao considerar o Direito como o conjunto de regras que preservam os seus interesses, mais ou menos no mesmo diapasão em que o nazismo considerava o Direito alemão como o conjunto de regras que sobrepunha o poder do Estado ao direito das pessoas.
A anistia não foi um favor, mas uma exigência da sociedade brasileira. Nenhum de nós quer remexer o passado, mas apenas que se faça uma reflexão sobre uma pacificação que não houve. De 1979 até hoje já se passaram mais de 15 anos. É tempo de encontrarmos a paz que só a verdade sedimenta.
Enquanto não chegarmos a antever que o futuro é o resultado do passado e que é preciso restabelecer a verdade histórica, não conseguiremos estancar os ressentimentos, que depois de tantos anos estão aí aos olhos de todos, mais vivos do que nunca.

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