São Paulo, quinta-feira, 7 de dezembro de 1995
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Os fantasmas do casarão

MOACYR SCLIAR

Como todos os fantasmas que se prezam, eles se encontravam pontualmente à meia-noite. Mas, diferente dos fantasmas que se prezam, eles não percorriam os corredores do velho casarão, assombrando pessoas. Preferiam se queixar:
- Já não se fazem mais assombrações como antigamente- suspirava um.
- É verdade -concordava outro. Fantasmas já não assustam ninguém.
- Muito menos essa gente -retornava o primeiro.
"Essa gente" era a família de lavradores que agora morava no casarão. De tudo o que desgostava os fantasmas, aquilo era o pior:
- Onde é que já se viu? Uma família de lavradores morando numa casa que conheceu riqueza e esplendor? Uma casa que ficou conhecida pelo luxo?
Sim, os fantasmas lembravam bem aquele tempo:
- Você lembra as festas que davam aqui? -perguntava o primeiro, nostálgico.
- Se lembro! -dizia o segundo. Os cavalheiros de fraque e cartola, as damas com seus vestidos de seda e tafetá, cobertas de jóias... Naquela época o café dava dinheiro.
- E naquela época -acrescentava o outro-, a gentinha conhecia o seu lugar. Ficavam lá longe, nos barracões onde moravam, espiando os convidados que chegavam nos carros luxuosos...
- Nas carruagens...
- Às vezes nas carruagens. E não se atreviam sequer a chegar perto do casarão, quanto mais entrar nele.
- Agora moram aqui.
- Agora moram aqui. Você viu o que um deles disse? "A casa é tão grande que a gente se perde nela." Você acha que um tipo que se perde numa casa tem o direito de morar nela?
- Sinais dos tempos, meu caro. Os lavradores mudaram. Andam até fazendo reivindicações. Onde é que vamos parar?
- Pois é. Onde é que vamos parar? Você lembra como era bom nos tempos da escravatura? Mas isso mudou. Hoje somos nós os intrusos. Hoje somos nós que temos de percorrer os corredores do casarão furtivamente.
- Como fantasmas sem-teto.
- É. Como fantasmas sem-teto.

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