São Paulo, sexta-feira, 8 de dezembro de 1995
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Videogame, Sivambra e "buwana" Raytheon

OTHON LUIZ PINHEIRO DA SILVA

Por meio da imprensa o cidadão brasileiro tem tomado conhecimento da existência de graves acontecimentos nos procedimentos para realização da importante meta de melhorar os atuais meios de vigilância da Amazônia, reconhecidamente precários. Segundo as notícias veiculadas, motivações que nada têm a ver com o interesse nacional (exercício da soberania e conhecimento dos problemas, das riquezas e potencialidades da Amazônia) são responsáveis por grande tráfico de influência e um estranho exercício de contorcionismo técnico e jurídico para justificar a dispensa de licitações formais privilegiando grupos estrangeiros e nacionais.
O contorcionismo começou quando, a partir de uma dispensa de licitação, foi escolhida uma firma nacional para definir as especificações do sistema, ou seja, a estrutura de governo delegou para essa firma a definição do que desejava tecnicamente. Quem não sabe o que deseja raramente compra bem.
Pelo que se sabe havia a intenção, desde o início, de que a mesma firma participasse da implantação do sistema, o que dá origem a questionamentos de ordem ética, pois o participante da definição seria também executor.
O contorcionismo se agravou e só não se tornou cômico pois pode ter sido prejudicial aos interesses nacionais, quando houve a dispensa de licitação formal (alegando ser projeto sigiloso e de segurança nacional) para a escolha de uma firma estrangeira para sua execução. Anteriormente os dados considerados necessários à execução de uma proposta de participação haviam sido enviados a várias embaixadas estrangeiras. Segredo de Polichinelo, talvez digno do Guiness Book of Records.
Em março de 1994 teve início o contorcionismo financeiro, quando foi driblada norma do Senado para obtenção do financiamento. A captação de 20% dos recursos (US$ 287 milhões) foi feita a partir da emissão de notas promissórias, operação considerada irregular pela Procuradoria da Fazenda Nacional.
A partir disso, praticamente todas as notícias veiculadas sobre o importante projeto Sivam continuam preocupantes para a sociedade brasileira: pagamentos a mais para a Esca, que em seguida foi à falência, embaixador e ministro de Estado acusados de tráfico de influência, fitas de escuta telefônica autorizada pelo Judiciário apagadas etc.
Estimulado pela preocupação cívica com todas essas notícias e com a tímida participação da comunidade científica e tecnológica nacional nesse projeto, consultei alguns engenheiros de sistemas conhecidos, inclusive com participação no Cindacta (Sistema Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo), já implantado nas demais regiões do país. A partir dessas consultas senti que podemos desmistificar o Sivam, que pode ser decomposto em duas partes, a saber:
a) Um subsistema voltado para as atividades de vigilância e controle do tráfego aéreo composto de:
- Radares que têm como principal fim gerar informações sobre a posição dos aviões. Devem ser localizados para se obter o melhor rendimento possível, normalmente em pontos culminantes.
- Terminais remotos que são minicomputadores, localizados em aeroportos e instalações ligadas ao controle aéreo, gerando informações sobre vôos, condições dos aeroportos, equipamentos e informações meteorológicas. Esses terminais enviam seus sinais para a central de controle de tráfego aéreo por meio de um sistema de comunicações similar ao que os grandes bancos utilizam para interligar suas agências.
- Estações de trabalho ligadas em rede. São minicomputadores localizados na central de controle de tráfego aéreo, que se comunicam e recebem dados dos radares e terminais remotos. A região amazônica é dividida em áreas e o controle de cada área fica sob a responsabilidade de um controlador de vôo, operando uma estação de trabalho na qual ele visualiza todos os dados de interesse para o controle aéreo daquela área.
b) Um subsistema de coleta e processamento de dados meteorológicos e ambientais, formado por estações ligadas em rede a plataformas de coleta de dados ambientais, estações meteorológicas de altitude e de superfície, radares meteorológicos, estações de recepção de imagens de satélite etc.
O primeiro sistema é muito similar ao Cindacta pertencente ao Sistema de Defesa e Controle do Tráfego Aéreo, instalado nas demais regiões do país e que já incorporaram parcela significativa de tecnologia nacional que pode ser ampliada. O segundo subsistema realizará um trabalho muito semelhante ao que o Instituto de Pesquisas Espaciais realiza, tendo para isso formado excelente equipe em anos de trabalho.
Não é difícil concluir que, ao invés do Sivam, da maneira que foi equacionado, poderíamos ter um sistema equivalente com muito menores dispêndios. A opção pela implantação de um sistema equivalente importando apenas os equipamentos necessários e utilizando os técnicos e o gerenciamento nacional, além da economia decorrente geraria empregos e nos daria o real controle de sua configuração e, por via de consequência, a capacidade de atualizá-lo tecnologicamente sempre que for considerado conveniente.
Poderíamos até chamá-lo de Sivambra, ou seja, Sivam brasileiro, visto que dessa forma cuidaríamos mais e teríamos mais respeito por nossa soberania, princípio fundamental de nossa Constituição tantas vezes esquecido, mas ainda não modificado por emenda alguma.
Para implantação desse sistema equivalente, os técnicos recomendam que, após planejamento detalhado, fossem canalizados para o Inpe os recursos necessários à implantação do subsistema de coleta e processamento de dados meteorológicos e ambientais; para o Ministério da Aeronáutica os recursos relativos ao subsistema de vigilância e controle de tráfego aéreo e fosse nomeada por decreto uma pequena comissão interministerial que funcionasse em tempo integral no acompanhamento e fiscalização da implantação do programa.
Para funcionamento e manutenção desse sistema, além das pistas de pouso atualmente existentes, possivelmente seria necessária a construção de mais algumas. Todas essas pistas poderiam contar com uma pequena infra-estrutura de apoio onde houvesse laboratórios de campo e alojamentos com conforto adequado para apoiar expedições de geólogos, biólogos e ambientalistas.
A partir dessas pistas, poderiam ser implementadas as operações de interceptação do narcotráfico. Elas poderiam também aumentar as opções de pouso de aeronaves com problemas.
O Sivambra seria sem dúvida um excelente exercício tecnológico para nossos técnicos. Na opção pela compra integral do sistema ao grande "buwana" Raytheon temos o seguinte paradoxo: o Estado, que por meio de suas universidades e institutos de pesquisa forma uma plêiade de técnicos, publicamente (e sem licitação) os declara incompetentes e apela ao grande "buwana".
A implantação de um complexo dessa natureza, se adequadamente gerenciada, custará muito menos que as recentes complexas operações de salvamento e fusão de bancos. Existem portanto recursos, precisamos de vontade política.
Parece não haver dúvidas de que temos em nosso país a capacitação necessária. É certo também que a preocupação em controlar, conhecer e manter a Amazônia é economicamente muito importante para a sociedade brasileira, tanto no presente como no futuro, e que, apesar dos grandes problemas sociais que vivemos no momento, vale a pena, com lógica e comedimento, investir nesse empreendimento.
Se, entretanto, ao invés de realizarmos esse esforço economizando e acreditando em nós mesmos, a nossa opção for a compra de um videogame de luxo, desperdiçaremos uma importante oportunidade histórica e o "buwana" Raytheon e uns poucos ficarão muito felizes.

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