São Paulo, sábado, 9 de dezembro de 1995
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Volta a poesia de Anchieta a Mário Faustino

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Em seguida à suave elegia de "Quase Memória", o quase-romance que Carlos Heitor Cony dedicou à saudade que sente do pai (Companhia das Letras) me chega às mãos uma imperiosa "Antologia de Antologias" da poesia brasileira, organizada por três professoras paulistas.
A editora do livro, Musa, teve o apoio cultural de uma enigmática entidade chamada Chácara Córrego do Mico, Jaboticabal, São Paulo. As três responsáveis pelo livro -Magaly Trindade Gonçalves, Zélia Thomaz de Aquino e Zina Maria Bellodi da Silva, que cursaram letras anglo-germânicas na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara- juntaram-se em torno de tudo quanto é antologia de versos no Brasil e produziram esta obra sólida, prima e de bom tempero. Ainda arranjaram Alfredo Bosi para dar, na introdução ao livro, uma boa aula sobre como é valiosa porém maltratada, mal areada a prata da casa da poesia brasileira.
Bosi
Esta "Antologia de Antologias" estava de fato fazendo falta. Nosso cânon está se dissolvendo por falta da circulação permanente de bons trabalhos existentes e do aparecimento de outros, atualizados. Sempre à procura do novo em si mesmo, o Brasil, de 64 em diante, ia ao encontro do nada. Relembra Bosi: "Excelentes antologias como o 'Roteiro Literário de Brasil e de Portugal', de Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Holanda, que saiu em 1956 e mereceria nova edição, e a 'Presença da Literatura Brasileira', de Antonio Candido e José Aderaldo Castello, que é de 1964, dão testemunho dessa etapa feliz de nossos estudos de Letras. (...) Mas a indústria cultural invasiva dos anos 70 até hoje minou fundo essa plataforma de modernidade lúcida construída naquela conjunção propícia. Os editores de textos didáticos, cortejando às vezes grosseiramente a mídia, timbraram em recalcar o passado no escuro da exclusão sem, por isso, tê-lo substituído por um repertório novo, coerente e pensado. (...) O livro didático de iniciação à nossa literatura tem sido marcado pela improvisação. O antigo é esquecido ou maltratado. O moderno é lido de forma pedante, ou, no outro extremo, pueril. (...) O que fazer?"
Resposta
Respondendo à sua angustiada pergunta, Bosi, como faço eu aqui, e o leitor sem dúvida o fará por sua vez, aplaude essa antologia que antologiza as anteriores. Peguem o livro. Ponham-se a folheá-lo, como fiz eu, e deixem que a força da nossa poesia se manifeste literalmente através dos séculos, de José de Anchieta (1534-1597) a Mário Faustino (1930-1962).
É bom sentir que tanto em Anchieta, o primeiro da "Antologia", como em Mário Faustino, o derradeiro, o poeta brasileiro procura se atribuir o condão de transformar e redimir quem o lê. Anchieta está celebrando em seu poema santa Inês, mártir: "Santa padeirinha / morta com cutelo / sem nenhum farelo / é vossa farinha. / Não se vende na praça / este pão da vida / porque é comida / que se dá de graça". Quanto a Faustino ele nos mergulha, quase assustadoramente, séculos depois, nesta nossa atual tristeza de não vermos paz ao redor para que o povo possa se alimentar com o pão da poesia e o pão que devia estar em todas as mesas: "No princípio / houve treva bastante para o espírito / mover-se livremente à flor do solo. / Agora o bandoleiro brada e atira / jorros de luz na fuga do meu dia / e mudo sou para contar-te, amigo, / o reino, a lenda, a glória desse dia".
101 poetas*
Mas esta "Antologia", que se chama, a si própria, em subtítulo, "101 poetas brasileiros revisitados", não cuida de descobrir ecos e intenções entre seus bardos. Deixa que falem o que falaram, ou, perdão, que cantem o que cantaram. E acredite o leitor que (fechados nossos ouvidos àqueles chatos inevitáveis, como Osório Duque Estrada ou Alberto de Oliveira) o fizeram maviosamente.
Agora, para irmos ao mais popular de todos, mergulhemos em "O Navio Negreiro" e num Castro Alves que conseguiu, em caseiras redondilhas, traçar um retrato da Grécia clássica tão bom ou melhor do que os de Byron: "Os marinheiros helenos, / que a vaga iônia criou, / belos piratas morenos / do mar que Ulisses cortou, / homens que Fídias talhara / vão cantando em noite clara / versos que Homero gemeu..."
Memória
No entanto, por excelente que seja um livro como este, jamais existiu qualquer antologia com cujo gosto e escolha concordemos totalmente. O poeta petropolitano Raul de Leoni (1895-1926) que acaba de completar centenário de nascimento, só é relembrado na coletânea atual por trabalhos seus mais finos e sofisticados. Não encontro aqui -e como não acho seu volume da "Luz Mediterrânea" apelo para a memória- seu soneto mais repetido e popular, que já foi acusado até de racista.
O primeiro quarteto, quando eu era menino, todo o mundo sabia de cor: "Nascemos um para o outro, dessa argila / de que são feitas as criaturas raras: / tens legendas pagãs nas carnes claras / e eu tenho a alma dos faunos na pupila". Os tercetos finais fazem uma proclamação aos povos: "É tanta a força que nos encaminha / em nosso amor de seleção, profundo, / que eu ouço ao longe o oráculo de Elêusis: / se um dia eu fosse teu e fosses minha / o nosso amor conceberia um mundo / e do teu ventre nasceriam deuses".
Quando, em outubro passado, ocorreu o centenário de Leoni (que morreu aos 31 anos de idade) Leyla Perrone-Moisés o relembrou na Folha com simpatia mas ressalvou: "O melhor de Leoni, para a sensibilidade de hoje, não está em seus sonetos perfeitos, de eleborados fechos de ouro, mas em certos versos de ritmo encantatório". Pode ser. Mas são tão poucos os que lêem Leoni que acho que, sem ajuda dos sonetos, as demais poesias cairão no esquecimento.

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