São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Sobre tucanos e dinossauros

ROBERTO CAMPOS

"As telecomunicações públicas, a partir da criação da Embratel, em 1965, e da organização do Sistema Telebrás, em 1972, iniciaram uma trajetória de rápido desenvolvimento, atingindo padrões de prestação de serviços compatíveis com os das nações desenvolvidas". (sic!)
Piada inicial do Paste -Programa de Recuperação e Ampliação do Sistema de Telecomunicação e do Sistema Postal- apresentado pelo ministro Sérgio Motta em 29 de novembro de 1995.

Em matéria de telecomunicações, o Brasil está combinando a garrulice dos tucanos, ao nível de programação, com a lerdeza dos dinossauros, em matéria de execução. A emenda constitucional nº 8, que flexibiliza as telecomunicações, foi promulgada em 16 de agosto último. Desde então, rigorosamente nada foi flexibilizado. Continuamos sujeitos ao despotismo monopolista da Embratelssauro e humilhados pelas ineficiências da Telessauro. A primeira torna o acesso à Internet uma experiência frustrante. A segunda torna as comunicações no eixo Rio-São Paulo-Brasília, nas horas de maior trabalho, uma experiência neurotizante...
Tem sido abundante a enunciação, pelo Ministério das Comunicações, de metas altissonantes, com excitantes sonhos de investimentos. Quando, entretanto, se espremem os textos à busca de elementos práticos para nortear a decisão dos investidores, sobram pontos de interrogação e motivos de inquietação. Nota-se na literatura do MIC quatro tendências subliminares: nacionalismo residual, apego às reservas de mercado, desrespeito ao usuário e descaso pela perda de competitividade dos utilizadores de serviços.
O primeiro documento concreto, destinado a deslanchar a exploração do serviço móvel celular e o uso de satélites de telecomunicações é o projeto de lei 1.287/95, que acaba de chegar ao Congresso. O citado projeto de lei em seus artigos 2º (parágrafo 2º) e 3º restringe as concessões "a empresas brasileiras que tenham pelo menos 51% do capital votante pertencente, direta ou indiretamente, a brasileiros". Em suma, restabelece a discriminação contra empresas brasileiras de capital estrangeiro, que foi abolida com a revogação do art. 171 da Constituição de 1988. Esse dispositivo discriminatório, redutor da capacidade brasileira de absorver capitais para a aceleração do desenvolvimento, foi substituído, por meio da emenda constitucional nº 8, pelos artigos 170 e 176, que estabelecem uma equiparação jurídica entre a expressão "brasileiros" e a expressão "empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país". Restaurou-se assim, na nova ordem constitucional, o princípio basilar da isonomia de tratamento, esculpido no art. 5º da Constituição Federal. A recaída nacionalista do MIC no cacoete da reserva de mercado é um idiota retrocesso econômico num país que necessita atrair capitais estrangeiros para mitigar seu crônico déficit de poupança externa. Na realidade, o que conta é a contribuição da empresa para criar empregos, gerar impostos, abrir mercados externos e trazer ou fazer tecnologia. A nacionalidade do acionista é secundária. O controle estratégico do governo, quando necessário (pois a única coisa estratégica é a eficiência operacional), se exerce pelo poder de dar e retirar concessões, legislar, fiscalizar, tributar e desapropriar. É um poder eminente e permanente, independentemente de onde caiu o umbigo do acionista.
As consequências da recaída nacionalisteira do MIC serão as seguintes:
. redução da receita do governo na privatização de estatais, ou na outorga de concessões, pelo estreitamento do leque de concorrentes;
. diminuição do nível potencial de investimentos e do ritmo de criação de empregos;
. desrespeito ao usuário, pela maior lentidão na correção de nosso atraso tecnológico e pela limitação da concorrência;
. inferiorização competitiva dos produtores nacionais, pela insuficiência dos serviços.
A justificativa para essa recaída nacionalisteira parece ser uma falsa analogia. A legislação norte-americana de 1934 limita a participação estrangeira a 20% nas telecomunicações, restrição prestes a ser eliminada na nova lei ora sob exame no Congresso em Washington. Esta adotará o princípio de reciprocidade, isto é, serão livres os investimentos dos países que não imponham restrições a investimentos norte-americanos. Aquela legislação foi passada meio século atrás, no auge da grande depressão dos anos 30, e num momento em que o surto nazi-fascista na Europa criava receios de infiltração de propaganda totalitária. Além disto, os Estados Unidos, líderes mundiais em telecomunicações, nunca tiveram escassez de capital e seus usuários nunca enfrentaram filas de espera. Imitar um mau exemplo por falsa analogia é falta de imaginação...
As idéias do MIC sobre satélites são falsamente liberalizantes, e, na realidade, retrógradas. Poucas coisas mais urgentes que a eliminação do monopólio da Embratelssauro, que alia despotismo burocrático e ineficiência funcional, como sabem todos que buscam conexões com a Internet. Num insulto ao usuário brasileiro o MIC, na exposição de motivos nº 92 ao presidente da República (de 28.11.95), sobre a política de utilização de satélites de comunicações, obriga os usuários a dar prioridade, até 31.12.97, à utilização dos satélites administrados pela Embratel, tanto para exploração de serviço público como para o serviço limitado de telecomunicações. É uma reserva de mercado, que prorrogará preços altos e serviços ineficientes, num momento em que a competitividade na economia global obriga as empresas a baratear custos e maximizar a eficiência. E, o que é pior, essa reserva de mercado ameaça tornar-se permanente, pois a "utilização da capacidade em segmento espacial estrangeiro" somente "ocorrerá em caráter complementar e temporário, enquanto não estiver disponível capacidade espacial em segmento espacial brasileiro com características técnicas similares e condições comerciais justas e razoáveis". Obviamente, o julgamento sobre a similaridade técnica e a justeza e razoabilidade das condições comerciais deveria ficar a cargo do usuário privado, que enfrenta riscos negociais, e não do burocrata que repousa suas nádegas nas poltronas de Brasília...
Prudentemente, o MIC apresenta um projeto de "lei mínima" para facilitar o deslanche da flexibilização do setor. O passo subsequente deveria ser a criação da entidade reguladora independente, para diminuir o arbítrio dos burocratas do MIC e ensejar uma corte de apelo contra políticas errôneas. Não há conveniência nem urgência, entretanto, em se passar um novo Código de Telecomunicações. Por dois motivos. Primeiro, porque a situação tecnológica é turbilhonal do país líder, os Estados Unidos, sendo possível que desapareçam as barreiras tradicionais entre telefonia local e de longa distância, televisão a cabo e transmissão por computador. Dessarte, qualquer legislação nossa que compartimentalizasse esses segmentos poderia tornar-se obsoleta. A segunda é que convém aguardar os primeiros resultados das experiências da Europa continental com a privatização e regulamentação das telecomunicações. A experiência européia de transição do monopólio estatal para regimes competitivos é mais relevante para nós do que a norte-americana, onde nunca houve monopólio estatal.
Em sua abundante literatura sobre a modernização dos Correios, com investimentos grandiloquentes de US$ 3,9 bilhões até o ano 2003, o MIC se esqueceu do principal: abolir o monopólio de facto dos Correios, privatizando o sistema, ou pelo menos abrindo-o à concorrência pelo setor privado. É o único meio de se garantir eficiência, assegurar respeito ao usuário e pôr cobro ao grevismo. Neste mês de dezembro de 1995, estamos ameaçados de greve dos Correios e do sistema telefônico. A nação passará a ser refém desses monopólios, da mesma forma que no ano passado 150 milhões de brasileiros se tornaram reféns de 47 mil petroleiros. Os funcionários dos monopólios estatais não são "servidores do público". São chantagistas reais ou potenciais! A França, paralisada por repetidas greves nos serviços públicos, está hoje experimentando amargamente os perigos do estatismo e dos monopólios.
Neste entretempo, seria conveniente que o MIC evitasse piadas de mau gosto como a citada na epígrafe deste artigo...

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