São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

Uma cena de amor cifrada entre Ben-Hur e o romano Messala

GORE VIDAL

Na primavera de 1958, a MGM estava mal das pernas financeiramente. Com a popularidade da televisão e a queda geral do público de cinema, os estúdios estavam na situação de dinossauros enfrentando uma drástica mudança de clima.
Sam Zimbalist me convocou a sua sala. Era um homem alto, com um quisto no pescoço. Tinha o hábito de arregalar os olhos de repente e, depois, semicerrá-los. Joe (Joseph) Manckiewicz também fazia isso. Os dois haviam copiado o gesto do lendário machão Vic (Victor) Fleming, um dos muitos diretores de "...E o Vento Levou". Sam fumava charutões e bebia leite com creme todos os dias. Era apaixonado pela esposa, Mary. "O estúdio quer que eu faça 'Ben-Hur' imediatamente." Gemi de desânimo. Eu havia sido suspenso no ano anterior, quando me pediram para escrever mais uma versão do filme que, no tempo do cinema mudo, fora o maior sucesso da MGM. Desde então, haviam sido escritos pelo menos 12 roteiros para uma versão sonorizada. Os dois últimos foram assinados, respectivamente, por Maxwell Anderson e S. N. Behrman, dois dramaturgos populares na época. "Já contratei o William Wyler. Ele vai trabalhar conosco assim que terminar aquele western que ele está fazendo." Arregalou e apertou os olhos. "Estamos pensando no seu amigo Paul Newman para o papel de Ben-Hur." Uma baforada de fumaça de charuto interpôs-se entre nós.
"Ele nunca vai topar." Graças a um homem chamado Turnupseed, que estava dirigindo o carro no qual James Dean bateu com seu Porsche, Paul havia substituído Dean em "Marcado pela Sarjeta", e se tornara um astro.
"Por quê? É o melhor papel do momento."
Expliquei-lhe que, após seu primeiro filme, um desastroso épico romano chamado "O Cálice Sagrado" (de Victor Saville, 54), Paul jurara nunca mais representar de saiote.
"Você escreve o roteiro?" Sam tinha grandes poderes de persuasão. Minha má vontade com aquele argumento era igualmente grande, mas por fim nós dois entramos em acordo. Eu iria a Roma com ele e Willy. Ficaria lá três meses, o que bastaria para preparar um rascunho, como ele sabia. Em troca, o estúdio me liberaria do contrato. Para mim, era perfeito. Enviaram-me uma cópia do contrato revisto. Assinei-o e devolvi-o ao mensageiro, um rapaz bonito e muito esperto. Anos depois Jack Nicholson relembraria a primeira vez que nos vimos.
Eu, Sam e Mary Zimbalist e William Wyler pegamos o vôo noturno da SAS de Nova York para Roma. Wyler havia finalmente lido o roteiro, uma compilação dos textos de Anderson e Behrman em que predominava o estilo poético elevado de Anderson. "Está horrível." Willy virou para mim seu ouvido bom, o que era sempre sinal de que ele estava atento e preocupado.
"Você ainda não tinha lido?"
"Não. Meu Deus." E calou-se. Sam e Mary estavam na outra extremidade da sala de estar do avião. Naquele tempo, tinha dessas coisas -tinha também uma cama que descia do alto quando a gente queria dormir, como nos vagões-dormitórios dos trens de outrora. Hoje em dia é difícil de imaginar que viajar de avião já foi uma coisa agradável.
Por fim Willy me perguntou: "O que é que um romano desamarra quando ele se senta?" Em seguida, fez-me uma série de perguntas sobre Roma antiga. Embora eu soubesse responder a algumas delas, minhas respostas tiveram o efeito de aumentar ainda mais sua ansiedade a respeito do projeto. Ele havia ganho US$ 1 milhão para dirigir o filme; nunca um diretor recebera tanto. A formação do elenco fora um pesadelo. A Universal se recusou a emprestar Rock Hudson, que era a segunda opção do estúdio, após Newman. Depois, resolveu-se procurar um desconhecido, mas a busca não deu em nada. Em desespero, Sam sugeriu Charlton Heston, que havia trabalhado no filme anterior de Willy. Embora Heston tivesse todo o encanto de um manequim de vitrine, Wyler havia conseguido arrancar dele um bom desempenho num western, no papel de vilão. Willy costumava dizer: "Não sou capaz de fazer um mau ator trabalhar bem, mas sei fazer com que um bom ator não dê vexame." Mas como dar vida a uma floresta petrificada?
Contra a vontade, a MGM contratara Heston, o qual -enquanto Willy e eu sobrevoávamos o Atlântico, debruçados sobre o roteiro- estava sendo devidamente paramentado; ao mesmo tempo, Jerusalém estava sendo reconstruída na Cinecittà, em Roma. O roteiro que tínhamos na mão era basicamente um filme mudo com quilômetros de diálogos bombásticos.
Em Roma, comecei a escrever o roteiro numa sala ao lado da de Zimbalist. Enquanto eu escrevia e Sam resmungava, nosso auteur assistia a todos os filmes romanos já feitos, o que não me parecia uma boa idéia; mas para Willy era a única maneira de captar o espírito da época -vendo filmes de outros diretores que haviam assistido a outros diretores, até bater no auteur dos auteurs, Cecil B. de Mille, que também não sabia patavina sobre Roma. O único filme romano "autêntico" que jamais vi -quer dizer, quanto aos cenários- foi "A Queda do Império Romano" (de Anthony Mann, 63). Como filme, uma bomba; mas o cenógrafo era fantástico e sabia muito bem como era Roma no tempo de Marco Aurélio -papel desempenhado por Alec Guiness, "no meio do farfalhar das togas", disse ele, "e do rumor dos chavões".
Também eu apelei para mais de um chavão. O enredo é um tanto confuso, para dizer o mínimo. Dois amigos de infância se reencontram já adultos. Um é um judeu sionista; o outro é um oficial romano. O reencontro é afetuoso; depois eles brigam por causa de política; em seguida, tornam-se inimigos mortais, até que, intermináveis horas depois, um mata o outro numa corrida de quadrigas. Disse eu a Sam e Willy: "Não há motivo para tanta fúria".
Respondeu Sam: "É por isso que você está aqui". Concordamos que uma discordância de opiniões numa única cena curta não bastava para justificar tanto ódio. Ben-Hur não era nenhum terrorista sionista e Messala, interpretado por Stephen Boyd, também não era nenhum opressor estrangeiro. Além disso -o que era mais relevante-, na era de Freud as platéias eram menos ingênuas do que na época do autor do romance original, o general Lew Wallace, e do que na época do primeiro Ben-Hur do cinema, com Ramon Novarro.
Na Cinecittà, no mesmo corredor em que ficava a minha sala, Federico Fellini estava preparando "A Doce Vida". Fred, como eu o chamava (ele me chamava de Gorino), achava fascinante estar trabalhando ao lado da produção de uma "superprodução épica hollywoodiana". Nem Sam nem Willy estavam interessados em conhecê-lo, de modo que fui eu quem lhe mostrou nossos cenários, que continham o grande estádio de Antioquia e o belo centro de Jerusalém.
Fred falou-me sobre as coisas que estava interessado em mostrar a respeito da "doce vida" de Roma no pós-guerra. Fellini, é claro, era essencialmente puritano, e eu pagão. Mesmo assim, conversando com ele sobre assuntos adultos, tive uma idéia que talvez servisse de motivação para aquela história infantil com que eu tinha que trabalhar.
Sam estava sentado à sua mesa, arregalando e apertando os olhos e tirando baforadas de um charuto; o rosto, normalmente rubicundo, tinha agora um tom esverdeado -seu coração estava prestes a pifar. Willy, um anãozinho pardacento, estava sentado numa cadeira de costas para a janela, com o ouvido bom virado para mim e um ar de reprovação no rosto. Eu acabava de lhe dizer que Ben-Hur e Messala tinham tido um caso na infância. Mas Ben-Hur, sob o impacto do sol feroz da Palestina e de seu deus ciumento, havia se tornado o mais hétero dos héteros, enquanto Messala, o pagão decadente, continuava apaixonado por Ben e queria recomeçar o namoro. Sim, era tal como no meu romance "A Cidade e o Pilar"; felizmente, nem Sam nem Willy o haviam lido. Quando Ben-Hur repele as investidas de Messala, este é tomado por um ódio mortal e duradouro. Se não pode ser amor ("Roma" de trás para a frente é "amor"), então tem que ser morte. Eu dividiria em duas a cena única do reencontro seguido da briga. A primeira seria uma espécie de cena de amor cifrada; a segunda, a rejeição, uma briga de amor não correspondido disfarçada de divergência política. Creio que jamais, na história de Hollywood, dois magnatas, num estúdio correndo o risco de ruína financeira, se viram tão perplexos diante da (para eles) loucura de um roteirista. Quando terminei, fez-se um longo silêncio.
Por fim, Willy exclamou: "Gore, estamos falando de Ben-Hur! Ben-Hur! Uma história de Cristo, ou coisa parecida -sei lá como é o subtítulo. Você não pode fazer isso com Ben-Hur...".
Os olhos de Sam estavam apertados. "Como é que você vai mostrar esse... esse caso amoroso?"
"Sem jamais mencioná-lo. Não vai haver nenhuma fala que alguém possa criticar. Tudo vai ser mostrado pelas reações dos dois." Expliquei que, quando Ben-Hur recusa-se a concordar com Messala a respeito da ocupação romana, fica claro pela expressão de Messala que o que está em questão não é política, e sim frustração amorosa.
Sam balançava a cabeça, como se dormisse. Willy estava um pouco assustado.
"Imagine-se uma cena em que Messala diga algo assim como: 'Lembra, eu te pedi', de tal modo que o apelo fique registrado num nível inconsciente na maioria dos espectadores. Eles não vão entender direito que o que está em jogo é o tal amor que não ousa dizer o próprio nome, mas vão perceber que o orgulhoso Messala está se humilhando diante de seu velho amigo."
Willy gemeu; levantou-se; virou o ouvido surdo para mim. "Bem, pode tentar. Acho que isso não é possível, mas qualquer coisa é melhor do que esse roteiro que a gente tem."
No dia seguinte, mostrei-lhe as duas cenas. Willy e eu líamos, enquanto Sam ouvia. Como era de praxe na MGM, quem quer que fosse o diretor, eu havia explicitado todas as "tomadas de reação" -as expressões no rosto de cada ator enquanto ele ouve o outro falar. Disse Willy: "Atenue um pouco esses comentários sobre as reações. Eu falo com o Charlton. Você fala com o Boyd. Mas não vá você dizer nada ao Charlton, senão ele vai cair duro". A imagem de tanta madeira petrificada despencando do alto foi o bastante para nos impor a omertà a todos. Falei com Boyd. Os olhos azuis brilharam de alegria. Ele sabia perfeitamente o que fazer. "Acho que tem um cachorro nesta cena", disse ele. "Eu posso fazer festas no cachorro na hora em que o Ben-Hur estiver me dando o fora."
Durante a leitura da cena, Charlton imitou Francis X. Bushman, que representara o papel na versão muda, sacudindo a cabeça, levantando o queixo, sem se dar conta do que estava acontecendo. Numa certa altura, Boyd piscou para mim. Ele havia encarnado o personagem. Depois que os rapazes foram embora, eu, Sam e Willy ficamos calados por um bom tempo. Estávamos, para dizer o mínimo, deprimidos. Por fim, eu disse: "O Charlton não tem muito charme, não é?".
"Não", disse Willy, "e o diretor pode se esforçar até o cu fazer bico que não adianta nada".
A cena foi filmada tal como eu a escrevera. Anos depois, após entregar prêmios a dois roteiristas na noite do Oscar, encontrei Willy nos bastidores. "Adorei aquela matéria de capa sobre você na 'Newsweek' ", disse ele. "Mas por que você nunca menciona 'Ben-Hur'?"
"Porque meu nome não saiu nos créditos." Willy pedira ao sindicato dos roteiristas que dessem o crédito para Christopher Fry, que ficara a seu lado durante toda a terrível filmagem. Primeiro o estúdio quis abandonar a produção; depois Sam morreu; e daí em diante foi uma sucessão de problemas até o fim. Christopher disse a Willy que, como eu havia escrito pelo menos metade do roteiro, meu nome também devia aparecer. Mas o sindicato, com seus árbitros secretos, é famoso por negar crédito àqueles que de fato escrevem os roteiros, preferindo dá-lo a seus associados. No caso, foi para um ex-presidente da organização, que afirmava ter mandado de Hollywood, pelo correio, as páginas que escreveu. Como Sam já tinha morrido, o sindicato mandou Willy lamber sabão, e eu e Fry fomos ambos cortados.
Nos bastidores do Dorothy Chandler Pavilion, mais uma vez eu e Willy discutimos a cena de amor que abre o filme. Willy negou que tivéssemos discutido, muito menos tomado, uma medida tão radical. Durante os anos que se seguiram, sempre que nos encontrávamos, nós dois tínhamos uma discussão amistosa a respeito do que eu havia colocado na cena e do que Stephen Boyd claramente está representando. Por fim, irritado com a insistência de Willy em se ater à verdade oficial, propus: "Vamos ver a cena juntos que eu lhe mostro o que está acontecendo na tela".
Willy fingiu não ouvir. "Engraçado. A 'Cahiers du Cinéma' sempre me adorou, até que eu fiz 'Ben-Hur'. Depois disso, eles nunca mais tocaram no meu nome." E olhou-me com um sorriso retorcido na boca, uma expressão muito ambivalente, como se desse a entender que talvez fosse minha sabotagem secreta que o tivesse feito cair em desgraça.
Tranquilizei-o, dizendo: "Você fez o melhor que pôde com o material que lhe deram".
Nunca fiquei sabendo o que ele realmente achava daquele filme, o qual, apesar de seu sucesso financeiro e dos inúmeros prêmios que conquistou, não deveria jamais ter sido feito. Eu sem dúvida não faria questão de afirmar minha participação nele se meu próprio sindicato não tivesse me roubado de modo tão gritante. Fosse como fosse, agora eu estava livre de meu contrato com a MGM. Além disso, sem querer, eu contraíra mais uma vez a febre de Roma -o amor pela velha cidade, que só o tempo é capaz de curar.
Parti de Roma em maio, e voltei para o Hudson.

Copyright 1995 da Literary Creation Entreprises, Inc. Copyright dos direitos para a língua portuguesa, no Brasil, da editora Rocco

Tradução de PAULO HENRIQUES BRITTO

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