São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

GORE VIDAL

Eu e Jackie nos conhecemos em 1949, na casa de um amigo em Washington. Eu sabia que meu padrasto, Hugh Auchincloss, havia ganho duas enteadas depois que minha mãe divorciou-se dele e ele voltou a casar-se. Como sempre, havia me esquecido de seus nomes. Jackie estava muito curiosa a meu respeito: "Afinal de contas, eu me instalei no seu quarto".
Em 1956, passamos a nos encontrar regularmente. Almoçávamos juntos no Plaza. Como Jackie era fascinada por Hollywood e as estrelas de cinema, levei-a ao ensaio do que viria a ser minha penúltima peça para televisão, "Honor". Jackie contemplava o diretor-assistente, Dominick Dunne, que engatinhava no chão colando fitas para demarcar os cenários.
"Eu gostaria muito de ser atriz", disse ela de repente, quando tomávamos café e víamos os atores ensaiando na outra extremidade do salão. "Você acha que já é tarde demais?"
"Você não acha que o que está acontecendo com você agora é muito mais interessante?"
"Para o John, é." Franziu a testa. "Para mim, não. Eu nunca consigo vê-lo. Ele vive ocupado..." Jackie raramente se queixava de John, mas as regras da família Kennedy a irritavam. "Eu queria um carrinho pequeno, um Thunderbird. É o que há de mais americano, não é?" E riu seu sorrisinho malicioso. "Mas o senhor Kennedy disse: 'Os Kennedy andam de Buick'. Por isso agora eu estou com um Buick. Como é que a gente arranja trabalho de atriz?"
Achei graça naquilo. "Você quer saber como você arranjaria trabalho de atriz? Bem, pela novidade da coisa, tenho certeza que qualquer estúdio toparia contratar você. Pelo menos uma vez. O que o John diria?"
"Ah, ele adora atores...", Jackie esquivou-se.
"O problema é o senhor Kennedy. Ele já foi dono de um estúdio de cinema e detesta atores."
"Menos a Gloria Swanson e..." Citei mais algumas atrizes com quem Joseph Kennedy sabidamente tivera casos. Jackie deu de ombros. E pediu-me que a apresentasse ao mundo teatral nova-iorquino.
Fomos, com Howard, ao Downey's, um restaurante na 8ª avenida frequentado por atores. Todos olharam para Jackie. Ela era de longe a mulher mais glamourosa presente, ainda que de modo algum a mais bonita. Estávamos na época áurea do Actors Studio, época em que se exaltava não apenas a vida interior freudiana como também a classe média baixa, a qual, nos anos Eisenhower, dominava a tela de televisão. Embora estas pessoas supostamente simples às vezes ficassem tristes, quando não tinham dinheiro para comprar eletrodomésticos ou outros bens de consumo, de modo geral elas sentiam-se muito satisfeitas por serem humildes e, principalmente, por serem americanas. Paddy Chayefsky era quem as interpretava na televisão; ele tinha um ouvido perfeito para a fala proletária. Naquela época em que Chayefsky era o Tchekhov, eu me contentava em ser seu Trigorine. Além disso, consideravam-me excêntrico por não escrever sobre "gente simples". Eu ia da Guerra da Secessão ao território do Novo México, passando por pseudoficção científica. Só comecei a escrever sobre o tipo de gente que Paddy conhecia quando fui para a MGM e, em meu primeiro filme, adaptei uma de suas peças, "The Catered Affair". Posteriormente, Paddy sempre ficava aborrecido quando os ingleses se referiam a sua obra-prima, "Wedding Breakfast" (o título com que o filme foi lançado na Grã-Bretanha), e fazia questão de me dar todo o crédito pela coisa. Com o tempo nos tornamos amigos, mas de início ele parecia ressentir-se de minha presença no meio, o que me parecia absurdo. Recentemente perguntei ao diretor Sidney Lumet qual a causa deste ressentimento. Sidney sorriu como uma abóbora de Dia das Bruxas: "Você não era judeu, e aquele mercado era nosso".
No Downey's, quando os atores perguntavam quem era Jackie, eu respondia: "É a moça nova da Warners". E pelo visto esta explicação os satisfazia.
Desde menina Jackie gostava de ser fotografada em diversos papéis e estados de espírito. John, pensando em sua própria carreira, acabou por criar a dela, ao aconselhá-la a jamais falar em público e jamais escrever cartas, pelo menos não para estranhos. Com tristeza, ela me disse: "Eu escrevo cartas brilhantes para esses jornalistas horrorosos, mostro para o John, e ele diz: 'Ah, maravilhoso. Agora rasgue.'"
Movida pela necessidade (e a falta de oportunidades para uma mulher de seu tempo e seu meio), Jackie dedicou sua vida à aquisição de dinheiro por meio do casamento, tal como sua mãe fizera antes dela, e tal como a minha mãe fizera antes da mãe dela, ambas casando-se com o mesmo homem rico. Jackie perdera a virgindade com um amigo meu na Rive Gauche de Paris. Ele pertencia a uma família "melhor" que a dela, como se dizia naquele tempo, porém não tinha dinheiro. Além disso, ele era protestante. Meu amigo contou-me depois que, quando falou em casamento, Jackie recusou. Um rapaz que era católico como ela, que corria atrás não de dinheiro, mas da glória, havia aparecido em sua vida. John tinha uma renda proveniente de um fundo de fideicomisso de US$ 10 milhões. O que era uma renda razoável para a época, mas não o bastante para que ela pudesse viver como seu modelo, Bunny Mellon. John precisava de uma noiva católica por causa de sua carreira política; além disso, e melhor ainda, por ser enteada de Auchincloss, Jackie pertencia -do ponto de vista dos Kennedy- à velha aristocracia protestante que eles pretendiam desbancar.
Quando Jackie contou a seu namorado que ia casar-se com John, ele ficou horrorizado.
"O que vai ser de você naquele mundo horroroso?"
"Leia os jornais", respondeu ela.
Os Kennedy jamais lhe teriam permitido que trabalhasse no cinema, como Jackie queria fazer em 1956, porém ela deu um jeito de se tornar algo equivalente a uma estrela de cinema -e, o que é melhor, uma estrela silenciosa de filmes que jamais foram feitos; seu rosto apareceu na capa de todas as revistas, quase até o fim. O casamento posterior com Aristóteles Onassis foi um ato calculado, a sangue-frio, porém necessário. Na verdade, Ari era mais encantador e espirituoso que ela, e no resplandecente circo europeu, onde -justiça lhe seja feita- Jackie nunca fez questão de brilhar, o comentário geral era: "Que diabo ele vê nela?".
Jackie sempre me dissera que seu objetivo na vida era "ser atraente para os homens"; mais tarde modificou esta meta, incluindo também o objetivo de ser uma boa mãe. Louis Auchincloss observou que Jackie sempre soube exatamente o que queria e como obtê-lo. Era muito mais dura do que todos os Kennedy, especialmente do que "aquelas moças cheias de dentes", que era o modo irreverente como ela se referia a suas cunhadas. Jackie teve o bom senso de fazer uma única aliança dentro da família: com o velho Joe, o autocrata milionário, que a adorava. Creio que ela terminou gostando de John. Sempre aceitara sua promiscuidade como algo perfeitamente normal -e era mesmo normal naquele mundo de poder.
Uma noite, num baile beneficente, Jackie me disse: "Coloquei você na mesma mesa que o John. Tem uma moça recém-importada da Inglaterra, burríssima, mas lindíssima, que vai ficar sentada entre você e o John, de modo que vocês podem ficar conversando por cima dela". Na atual onda de hipocrisia a respeito do papel do sexo na política e da absoluta necessidade da monogamia perfeita, Jackie parecia saída do século 18. Eu e minha irmã até hoje discutimos se Jackie tinha um lado erótico ou se o dinheiro era mesmo sua única paixão.
Creio que a única pessoa que Jackie alguma vez amou -se de fato ela era capaz de tais sentimentos- foi Bobby Kennedy. Havia sempre uma intensidade estranha em sua voz quando falava comigo sobre ele; e foi a antipatia mútua entre eu e Bobby que deu fim a minha amizade com Jackie -o que, pensando bem, foi até bom, já que não nasci para cortesão.

Continua à pág. 5-8

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