São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Incidentes literários

JOSÉ LUIS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O romancista Martin Amis, 45, conhecido desde sua aparição nos anos 70 como o "enfant terrible" da cena literária inglesa, diz não ter pensado em gerar polêmica ao escrever seu último romance, "A Informação", publicado em março na Inglaterra e lançado esta semana no Brasil.
Tudo ao redor de "A Informação", entretanto, parece fazer parte de uma coreografia do escândalo literário. Richard Tull e Gwyn Barry, as personagens centrais, são escritores, um fracassado e outro recém-chegado à lista dos mais vendidos. O eixo do romance gira sobre a inveja de Tull e o que ela o leva a fazer contra Barry.
A trama poderia ser apenas mais uma alegoria da vaidade literária, caso não houvesse vários indícios de que tem raízes na vida real. Amis foi bastante amigo, por muito tempo, de Julian Barnes, também escritor. Assim como Tull e Barry, Amis e Barner se conheceram na faculdade e são parceiros de jogos de bilhar e tênis.
Barnes não é tão consagrado como Barry (ou Amis), nem tão obscuro como Tull, mas a crítica inglesa não deixou de notar que a relação real entre Amis e Barnes é inversa à relação imaginária entre Tull e Barry. Barnes teria sido tomado como modelo para Barry, em uma subversão irônica da realidade. Amis retrucou: "Ambos sou eu".
Tudo poderia ainda não passar de mais um caso de imitação da vida pela arte, não fosse a intriga gerada pelo agenciamento do livro. Ao terminar o romance, Amis pediu a sua agente, Pat Kavanaugh, que conseguisse 500 mil libras por ele e mais alguns contos. Ela conseguiu 460 mil, mas foi despedida. Detalhe: Kavanaugh é mulher de Barnes. Barnes enviou uma carta de desagravo a Amis. Os dois romperam.
Amis contratou então Andrew Wylie, agente americano conhecido na Inglaterra como "o Chacal. Wylie conseguiu um adiantamento de US$ 800 mil da editora inglesa HarperCollins. Ninguém, na imprensa inglesa e nova-iorquina, entendeu porque o editor pagou tanto pelo livro, e todos apostam que ele nunca terá o dinheiro de volta.
O caso gerou tumulto no mundo editorial, além, é claro, de muita publicidade para o livro. O que mais pode divulgar um romance sobre inveja literária, senão muita inveja literária tornada pública? Há, contudo, o outro lado. "A Informação" é entretenimento de qualidade, escrito no melhor estilo da prosa moderna por um romancista comparado, por Saul Bellow, a Flaubert e Joyce. Efeito de mídia ou boa literatura? Resta ao leitor decidir.
Além de escritor de ficção, Amis, filho do escritor Kingsley Amis, morto no dia 22 de outubro, é jornalista. Escreveu, entre outros, os romances "Grana" e "Campos de Londres", ambos publicados no Brasil pela Rocco. O escritor falou à Folha, por telefone, de Londres.

Folha - Como o sr. define "A Informação"?
Martin Amis - É um romance cômico que lida com assuntos pesados. Mas é de qualquer modo uma comédia. Foi escrito para fazer rir.
Folha - "A Informação" é um livro sobre a inveja literária. O que o sr. espera de sua publicação no Brasil, onde os escritores populares são poucos e o mundo literário desconhecido?
Amis - Não faço idéia. Imagino que não haja uma cultura de leitura de romance como há na Argentina. Sei que se fala português (risos). Mas faço pouca idéia da vida intelectual no Brasil.
Folha - O que é universal no livro?
Amis - Penso que qualquer um, entre 40 e 45 anos, perceberá o que é o livro. Ele lida com noções universais sobre o homem e a humanidade. Fala sobre o que se espera do homem e sobre como os homens se exercitam para sentir raiva uns dos outros. Esta é a cultura que os homens criaram para si. Ela tem seu aspecto miserável.
Folha - O que pode ser a literatura em um mundo em rede?
Amis - Toda essa bobagem a respeito da informação, Internet e tudo mais, me deixa aturdido. É o que eu não quero. Penso que as pessoas irão perceber, depois de um momento, que a solidão, a comunhão com o autor, é algo que o livro realiza melhor.
Quando acabo um livro, estou em comunhão com William Shakespeare ou Saul Bellow. Quando estou na Internet, comungo com qualquer emissora do Havaí. Eu não quero fazer isso. Eu penso assim que o livro vai sobreviver. É provavelmente verdadeiro, como diz Gore Vidal, que a literatura não carece de escritores, mas talvez de leitores.
Folha - Em seu livro, a história da astronomia é a história da humilhação da humanidade...
Amis - Da crescente humilhação da humanidade.
Folha - Sim. Há alguma similaridade entre este argumento e autores como Copérnico, os quais, de uma ou de outra forma, estremeceram o narcisismo humano frente ao universo?
Amis - Não, eu não vejo as coisas assim. Vejo isso como uma forma de antiespiritualismo, como um desenvolvimento pelo qual as pessoas tiveram de passar, nos últimos 500 anos, ao se depararem com as dimensões do universo. Descobrimos que não éramos o centro do universo. Ficamos cada vez menores, e o universo maior.
Mas esta de algum modo é uma descoberta verdadeira. Pode-se argumentar que Copérnico nos situou. É estimulante encontrar a verdade sobre onde estamos no universo. E ser o primeiro a saber. Nossos ancestrais ignoravam nosso lugar no cosmos. Foram ignorantes, durante muito tempo, sobre algo central em suas vidas. Esta é sem dúvida uma parte de nossa evolução.
Folha - Num artigo publicado na revista "The New Yorker", o sr. diz que aprecia a literatura de Will Self e Lawrence Norfolk. O que lhe agrada nestes jovens ingleses?
Amis - Os dois, em particular, têm sido escritores bastante cerebrais. São intelectualmente formidáveis.
Folha - E como o sr. vê a literatura britânica atual?
Amis - Sinto que ela está bastante saudável. Estou certo de que muitas pessoas concordarão que este é um sentimento muito forte em todo o mundo hoje. E isso graças a alguns ingleses, como Salman Rushdie.
Folha - E sobre Saul Bellow?
Amis - Ele é sem dúvida um dos maiores mestres da prosa no século 20. Ele deve ser lido em razão de seus pensamentos e do modo extremamente belo com que expressa suas percepções. Mas deve-se lê-lo sobretudo para comungar com uma mente rara.
Folha - O que o sr. pensa de sua frequente comparação com Flaubert e Joyce?
Amis - É muito bom, fico vermelho com isso (risos). Parte de mim espera por isto, e parte de mim sabe que não é verdade. Mas ainda pode ser verdadeiro. Eles eram mais velhos do que eu quando escreveram seus grandes livros.
Folha - Quais são suas influências literárias?
Amis - Sinto que minhas influências são uma mistura de Bellow e Nabokov. Bellow tende para a vida atual, Nabokov é mais terrível e também mais agradável.
Folha - Fala-se muito que seu pai não gostava de seus livros. O sr. gosta dos dele?
Amis - Sim, muito. Sempre admirei seu trabalho. É natural admirar escritores mais velhos e desgostar dos mais novos. É uma regra da literatura. Talvez tenha sido alarmante para ele que eu tenha me tornado um romancista. Talvez mais alarmante para ele do que para mim.
Mas ele gostou de alguns de meus livros, ele gostou de "A Flecha do Tempo", por exemplo. Mas ele não podia nem sequer passar pelo resto, por causa do estilo de voz mais moderno. Você tem que ter a mente muito aberta para admirar os mais jovens.
Folha - A morte de seu pai influencia de alguma maneira sua literatura?
Amis - Sinto que tudo é diferente e que tudo é o mesmo. É muito doloroso falar sobre isto. Eu não acho que vou escrever nada diferente. Espero simplesmente continuar a escrever meus livros. Sinto-me emocionalmente diferente. É algo sobre o qual eu talvez possa eventualmente escrever, daqui a dez anos ou mais. Quem sabe?
Folha - O que restou da polêmica acerca das supostas raízes do livro na vida real?
Amis - Nada. Nunca houve nada a ver com a vida real. É só fofoca. O livro não tem relações com pessoas reais.
Folha - O que o senhor está escrevendo no momento?
Amis - Estou escrevendo um livro de contos, "Straight Fiction".

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