São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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A ciência nos tribunais

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O tipo de comportamento que nós estamos vendo seria de esperar de um jardim de infância, não de cientistas", disse à Folha a advogada americana Barbara Mishkin.
Ela tem uma especialidade que provavelmente só existe nos EUA, país que gasta a maior parte da verba de saúde do planeta: "pesquisa médica apoiada federalmente". Ao lidar diariamente com cientistas da área biomédica, ela notou comportamentos tipicamente infantis, equivalentes ao garoto que diz que o jogo parou porque a bola é dele.
Os cientistas americanos estão brigando por vários motivos, mas o principal deles é o acesso aos dados de pesquisas feitas em conjunto com outros pesquisadores. Saber quem fica com a bola tornou-se um foco de brigas constante, só que, ao contrário dos garotos, a disputa acaba parando em tribunais.
Mishkin escreveu um artigo recente sobre o problena na revista científica americana "Science". Para ela, o problema maior é a inexistência de regulamentos internos das universidades, ou nos NIH (Institutos Nacionais de Saúde, um complexo de vários centros de pesquisa federais dedicados à pesquisa biomédica, que são, conjuntamente, os maiores usuários de verbas de pesquisa na área).
No artigo, ela relata alguns casos (veja quadro ao lado). A falta de regras de conduta acaba prejudicando as próprias instituições. Sem ter como resolver o problema internamente, a parte prejudicada vai à Justiça. E, quando surge um veredicto, o resultado pode ser espetacular: indenizações de centenas de milhares de dólares.
Os problemas são às vezes os tipicamente rotulados de "má-conduta científica", como o plágio ou a falsificação de dados. Mas cada vez mais o mero acesso aos resultados de uma pesquisa está se tornando objeto de litígio.
A falta de regulamentação prejudica também ao retirar das instituições de pesquisa a tutela sobre os cientistas. Lavar a roupa suja em casa sempre foi um ideal da profissão científica. Levar a roupa a um tribunal ainda é considerado pouco atraente, ou mesmo uma "traição", mas isso está mudando -apesar de os próprios júris ou juízes se confessarem incapazes, ou desinteressados, na lavagem.
Um caso típico foi o do pesquisador M. M. Weinstein, principal autor de um artigo científico que os outros dois colegas, D. J. Belsheim e R. A. Hutchinson, queriam revisar.
Fizeram a revisão e mudaram a posição do nome de Weinstein, que processou os colegas e a Universidade de Illinois.
A base da querela era o direito autoral, por isso a corte decidiu que cada co-autor tinha direito de rever o artigo. A inexistência de leis específicas para cuidar da má-conduta em ciência faz com que essas disputas sejam estudadas com bases em parâmetros jurídicos nem sempre adequados.
"Isso acontece devido ao ambiente de alta pressão nas universidades", diz Mishkin. "A verba está cada vez mais difícil." E a possibilidade de um resultado de pesquisa ser comercializado -em um novo remédio, por exemplo- "torna as pessoas mais agressivas", afirma.
Existem casos em que a vítima é um aluno de pós-graduação, ou mesmo um cientista visitante, que tem seu trabalho apropriado pelo laboratório em que estagiou.
"Um aluno de pós-doutorado sabe que sua situação é temporária", diz Mishkin, portanto as regras de convivência estão razoavelmente definidas.
Mas uma nova safra de casos está surgindo em que as partes são cientistas de reputação ou experiência semelhantes, pertencendo ou não à mesma área.
A competição cada vez maior por verbas tem encorajado trabalhos colaborativos entre grupos de pesquisadores. A necessidade de estudos multidisciplinares às vezes junta geneticistas com endocrinologistas, ou com psiquiatras.
"A quem pertencem os dados genéticos: ao geneticista ou a ambos?", pergunta Mishkin. "Os centros de pesquisa devem ter regras a respeito."
Um bom exemplo é a Universidade Harvard. Quando um cientista deixa um grupo de pesquisa, ele pode levar cópias de seu trabalho -levando amostras de uma linhagem celular, por exemplo-; ou, caso isso não seja possível, ele deve ter acesso aos dados que ficaram no seu ex-laboratório.
Há casos em que lavar a roupa suja na Justiça é necessário, quando a infantilidade de uma das partes foi longe demais.
Um ex-cientista dos NIH sabotou o trabalho do colega, destruindo uma linhagem celular, mas foi forçado pela corte a pagar os custos de refazê-la.

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