São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Admirável mundo novo

José Paulo Paes critica idéia do futuro de Bill Gates

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se você amealhar algum dia uma fortuna de US$ 13 bilhões, poderá dizer as tolices que quiser sem se preocupar com a mídia: ela ouvirá cada palavra sua como se fosse um oráculo sagrado. Não vou cometer aqui a injustiça de supor que o recém-lançado livro de Bill Gates, "A Estrada do Futuro", só contenha tolices. Mas não há como fugir à evidência de que o futuro por ele prognosticado é no mínimo decepcionante e tolo. Uso o verbo supor em respeito à verdade: não cheguei a ler o livro todo; li apenas os que a revista "Veja" considera "melhores trechos dele e que reproduziu num dos seus últimos números.
Se pelo dedo se pode conhecer o gigante, esses trechos sugerem que Bill Gates está bem longe de o ser, pelo menos enquanto escritor. E como, a esta altura da vida, eu já começo a contar retroativamente o tempo de que ainda disponho para ler ou reler os livros que gostaria de ter lido ou relido, creio não perder grande coisa se me restringir, no caso de "A Estrada do Futuro", aos extratos pinçados pela "Veja". Eles já dão a medida da estreiteza de vistas desse futurólogo chegado tardiamente a um campo explorado à exaustão por antecessores não menos decepcionantes.
Na sua área específica de atividades, o presidente da Microsoft é um dos luminares do tipo de inteligência tecnológica à qual estão hoje confiados os destinos do mundo em que, bom ou mau grado nosso, estamos vivendo. O que caracteriza esse tipo de inteligência é a arrogância da especialização. Por entre as barras de suas respectivas jaulas profissionais, os tecnólogos mais ambiciosos pretendem não só abarcar teoricamente a realidade como sobre ela atuar em nível pragmático. Parece ser esse também o caso de Bill Gates, cujo admirável mundo novo, tal como o sonhou desde a gigantesca empresa de informática por ele fundada e graças à qual conseguiu formar um patrimônio que o torna o homem mais rico do mundo.
Não se estranhe o uso de uma palavra com as conotações religiosas de "missão" no contexto de um discurso utópico-empresarial como o de Gates. Pelo menos desde Max Weber, sabe-se do casamento entre o céu e o inferno celebrado pelo encontro histórico do protestantismo com o capitalismo, sob a égide do binômio fé e lucro por via do qual os Estados Unidos alcançaram transformar-se, em dois séculos, na maior nação imperialista da história. E se junto por hífen dois adjetivos aparentemente antitéticos como "utópicos" e "empresarial" é porque só essa junção pode dar boa conta da linha de pensamento predominante nos trechos que li de "A Estrada do Futuro".
A estrada em questão é a da informática ou, mais precisamente, a rede de intercomunicação entre computadores que se vai tornando a cada dia mais vasta e mais intrincada. É por ela que, com a sua visão de especialista desinteressado de outras possíveis estradas, Gates vê passar o carro-chefe do futuro. Um futuro bem distante da abadia de Thelème, da Cidade do Sol ou do Éden sem classes sonhados por Rabelais, Campanella e Marx, para citar três utopistas tradicionais. O admirável mundo novo divisado por Gates não é o mundo aberto das esperanças igualitárias, mas o mundo fechado dos chamados interesses em jogo. Ou seja, um presente cujas linhas de força tivessem sido elevadas à voltagem máxima. Vem daí o caráter decepcionante das profecias de Gates.
Apesar disso, por sob o tom pedestre em que elas estão vazadas ressoa ainda, subliminar, a ênfase da linguagem profética, linguagem na qual os camelôs tiveram quiçá o modelo mais remoto de suas arengas de rua. Tal ênfase é perceptível numa afirmativa como a de que a "estrada da informação transformará a cultura tão radicalmente quanto a prensa de Gutenberg transformou a Idade Média". Alguns dos prodígios arrolados pela futurologia de Gates podem dar uma idéia do que ele entende tanto por cultura quanto por radicalidade.
"Exiba todas as matérias do mundo inteiro sobre o primeiro bebê de proveta" ou então "Liste todas as lojas que vendem uma ou mais marcas de comida de cachorro e que possam entregar uma caixa em minha casa dentro de 60 minutos". Se isso não for suficientemente cultural, que tal isto: "Se estiver vendo o filme 'Ases Indomáveis' e achar que os óculos de aviador de Tom Cruise são demais, você poderá dar uma pausa no filme e se informar sobre os óculos, ou mesmo comprá-los no ato -se o filme for provido de informação comercial. Ou então marcar a cena e voltar a ela depois.
Enquanto esperamos com natural impaciência por tão radicais transformações da nossa cultura, talvez não seja fora de propósito ler, para distrair-nos da espera, o que um compatriota de Bill Gates escreveu há perto de século e meio atrás acerca de uma utopia científica proposta num livro de título quilométrico: "O Paraíso ao Alcance de Todos os Homens, Sem Trabalho, Pelas Forças da Natureza e da Maquinaria. Discurso Endereçado a Todos os Homens Inteligentes". O autor desse livro, um tal Etzel, ficaria em total esquecimento se sobre ele Henry David Thoreau não tivesse escrito um memorável artigo.
Nesse artigo, o teórico da desobediência civil, que foi também o precursor da luta ecológica, criticava ferozmente o que chamava de "transcendentalismo na Mecânica". Criticava-o numa linguagem que misturava saborosamente a ironia do panfletário com as objurgatórias do moralista. A certa altura, dizia Thoreau: "Quão pouco nos detêm as mais maravilhosas invenções dos tempos modernos! Elas insultam a Natureza. Toda máquina, ou aplicação específica, parece um ligeiro ultraje contra leis universais. Quantas esplêndidas invenções não existem a atravancar o solo? Julgamos bem-sucedidas somente aquelas que atendem às nossas necessidades sensíveis e animais, que cozem ou preparam, lavam ou aquecem, ou coisas assim. (...) O principal defeito deste livro é procurar meramente assegurar o mais alto grau de conforto e prazeres vulgares".
Longe de mim, ao citar o artigo de Thoreau, a intenção de confundir a charlatanice pretensamente científica de Etzel com a competência informática de Bill Gates. Enquanto aquele andava perdido nas nuvens da mais desvairada fantasia, este vai sempre pisando o chão firme da realidade quando mapeia os meandros da sua estrada do futuro. Mas, ai de nós todos, essa estrada parece levar, não a um Lincoln Center de deleites culturais propriamente ditos, mas a uma Coney Island dos mesmos "prazeres vulgares" que o nosso século nos tem impiedosamente impingido sob o álibi da produção em massa.

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