São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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COMO SOBREVIVI AOS ANOS 50

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Gore Vidal fecha o seu livro de memórias, recém-publicado nos EUA e prometido para daqui a alguns meses pela Rocco, com a palavra "meanwhile" (entretanto, enquanto isso), seguida de reticências. Só formalmente, portanto, "Palimpsest" (Random House, US$ 27.50) termina na página 419. Outras tantas deverão ser escritas, dando conta do que seu autor viu e viveu nas últimas décadas. Sua "memoir" cobre apenas os primeiros 39 anos de sua vida -de forma anárquica, como convém ao gênero e ao desinteresse do autor em expor seu passado à rigidez factual das autobiografias.
Acomodado em sua magnífica casa de Ravello, debruçada sobre o mar Tirreno, Eugene Luther Gore Vidal, 70, vai e volta no tempo, recobrindo lembranças infantis, adolescentes e adultas com observações sobre o cenário que o cerca e alguns problemas do seu cotidiano. Daí a opção por palimpsesto: antigo material de escrita, em geral pergaminho, usado duas ou três vezes mediante raspagem do texto anterior, em razão de sua escassez ou alto preço.
Vidal vive na Itália desde os anos 60, sempre na companhia de Howard Austen -união platônica de quase meio século, sólida o bastante para justificar as sepulturas que o escritor reservou para ambos no cemitério de Rock Creek, em Washington, onde serão enterrados entre os túmulos de Jimmie Trimble e Henry Adams. Ou seja, entre aquele que mais falou ao coração de Vidal e aquele que mais coisas sobre a história da América ensinou ao autor de "Lincoln".
Henry Adams figura em qualquer boa enciclopédia como um dos maiores historiadores americanos do século passado. Trimble é uma exclusividade de "Palimpsest". Herói da guerra no Pacífico, onde morreu em combate, com 19 anos, Trimble foi a única paixão assumida de Vidal. "Meu complemento perfeito", diz o inventor de Myra Breckindridge, que antes e depois dele só se envolveu com homens e, ocasionalmente, mulheres para saciar a libido.
E como saciou. Ao chegar aos 25, já havia transado mais de mil vezes. Sem contrair doenças venéreas ("ao contrário de John Kennedy e Marlon Brando") e sem crises de ciúmes ("ao contrário de Tennessee Williams"). Sempre preferiu "breves adesões anônimas", resguardando-se de relações com amigos e só abrindo praticamente duas exceções em sua regra de jamais ir para a cama com alguma celebridade (ou quase isto): a escritora Ana‹s Nin (com quem viveu por uns tempos, no interior da Guatemala, na segunda metade dos anos 40) e o ícone beat Jack Kerouac (com quem passou uma noite no hotel Chelsea, de Nova York, no final da década de 50).
Neto de senador e filho único de um pioneiro da aviação, Vidal nasceu e cresceu à sombra do poder. Quando sua mãe, Nina, casou pela segunda vez (com o ricaço Hugh Dudley Auchincloss), tornou-se meio-irmão de Jacqueline Bouvier, futura primeira-dama dos EUA, aproximando-se dos Kennedy e, consequentemente, da Casa Branca. A julgar pelas reminiscências de seu filho, Nina era um monstro: egoísta, invejosa, carreirista, intrigante, além de alcoólatra e viciada em morfina. Passaram 20 anos sem se ver e falar. Em 1968, ela morreu e ele não verteu uma lágrima. São para ela as palavras mais duras do livro.
Quem dele também sai tosqueado é o escritor Truman Capote. Tinha todos os defeitos de Nina, mais um: mentia que nem o barão de Munchausen. Vidal desmoraliza sua suposta intimidade com André Gide (que nem de nome o conhecia) e nega seu "affair" com Albert Camus (que, além de heterossexual convicto, se dedicava na época a paquerar atrizes). Não é mais lisonjeiro o retrato de Ana‹s Nin, que por sinal nasceu no mesmo ano (1903) de Nina. Além de oportunista e pretensiosa, não era lá muito cheirosa e tinha as gengivas superiores desagradavelmente escuras.
Outras vítimas da língua ferina de Vidal: o escritor inglês Evelyn Waugh ("Um carreirista bêbado que escreveu romances engraçadinhos que só chamaram atenção quando seus elementos telenovelescos foram descobertos pela TV"); o bardo beat Allen Ginsberg (a seu ver, muito melhor relações-públicas do que poeta); o ensaísta Lionel Trilling ("Uma pessoa capaz de escrever um livro sobre E.M. Forster sem se dar conta de sua veadagem intensa, quase religiosa, não pode ser grandes coisas como crítico").
Sua indiscrição, relativamente conspícua, expõe mais segredos dos que já não estão aqui para contestá-lo. O duque de Windsor, por exemplo, sofria de ejaculação precoce. Eugene, pai do escritor, possuía três testículos. Tennessee Williams detestava ler e só dava em cima de rapazes descaradamente broncos. Jackie Kennedy perdeu a virgindade para um amigo de Vidal, num elevador parisiense, e teve um caso com o ator William Holden para se vingar das prevaricações de JFK. Greta Garbo, de quem Vidal ficou amigo no final dos anos 60, devorava todas as revistas de fofocas de Hollywood e mais de uma vez vestiu-se com as roupas do escritor.
Sua preferência por atores ("são mais modestos, menos seguros e contam histórias melhores que as dos escritores") e gente do "show business" o afastou um pouco da convivência com seus colegas de profissão. Nem sequer Tennessee Williams, Paul Bowles e Louis Auchincloss passaram com ele mais tempo do que o ator Paul Newman e a atriz Joanne Woodward, seus afilhados de casamento. Parte dessa preferência se deve ao fato de que, em diversos momentos de sua vida, Vidal trabalhou para a Broadway, a televisão e o cinema. Como autor e, mais recentemente, ator.
Maiores detalhes sobre o ator Gore Vidal no próximo volume de suas memórias. "Receio não ter muito tempo para concluí-las", confessou ele a um jornalista inglês. Qualquer um na sua idade diria a mesma coisa -sobretudo se tivesse pressão alta e diabetes. Por via das dúvidas, ele já deu início ao segundo e derradeiro palimpsesto.

ONDE ENCOMENDAR
"Palimpsest", de Gore Vidal, pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, São Paulo, tel. 011/285-4033)

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