São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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França faz greve com sindicatos fracos

ALAIN TOURAINE

A França é o único país da Europa Ocidental e até mesmo o único país industrializado a regularmente sofrer crises dramáticas que parecem dar sequência às revoluções que transtornaram e transformaram o país em 1789, 1830, 1848 e 1870, sem falar no aspecto quase revolucionário das grandes greves de 1936 e 1947, na época da grande divisão da Europa em duas e do início da Guerra Fria.
Os próprios estudantes, após 1968, se sublevaram em massa em 1976, 1986 e 1990. Essa longa sucessão de crises não é produto do acaso. Ela indica, sobretudo, que, na França, as crises sociais são, antes de mais nada, crises políticas. Fato que deixa à mostra as fraquezas dos sindicatos e a força dos partidos na esquerda francesa.
Sempre se trata do Estado. Por muito tempo o Estado se revelou como sendo a força motriz do desenvolvimento econômico, o defensor dos trabalhadores e o construtor da nacionalidade, contra a aristocracia e o clero. A França, como o Brasil, é um país formado por seu Estado, é mais uma nação do que um povo, ao estilo alemão.
Hoje, porém, a França está profundamente engajada na construção de uma sociedade européia liberal, competitiva e muito menos voluntarista. A economia francesa se adaptou bem a essa nova situação, mas a influência do Estado sobre a sociedade não diminuiu, fato que coloca a sociedade francesa numa situação contraditória: pode ela ingressar numa Europa liberal quando é o Estado quem gera 55% do produto nacional?
A social-democracia sueca viveu uma crise análoga, mas sem rupturas sociais. O que complica a situação na França é que, diferentemente da Suécia, ou mesmo da Itália, o setor patronal e os sindicatos são fracos.
Esses, em particular, praticamente não existem, a não ser no setor público. Portanto, eles se identificam com o Estado, fato que os impede de administrar a transição a uma economia liberal.
Assim, o Estado é questionado pelo próprio Estado, e assistimos a uma sublevação de todas as forças que conclamam à proteção do Estado. Essas forças são muito diversas, e ninguém visualiza uma transição para uma sociedade ao estilo dos EUA ou Japão. Mas o governo, por meio de uma estratégia catastrófica, conseguiu unir todas essas forças contra sua política.
O que mais inquietou a opinião pública foi o que ela entendeu como um ataque à Previdência social. Note-se que o orçamento da proteção social é de US$ 400 bilhões, enquanto o Orçamento do Estado é de US$ 300 bilhões.
Isso deixa claro a importância imensa do que está em jogo. O governo propôs medidas gerais que visam estabelecer controle sobre as despesas com a saúde, pois a França possui sistema liberal. Essas medidas já haviam sido propostas pelo governo socialista.
Poder-se-ia imaginar que essas medidas poderiam ter sido adotadas sem drama. Mas o governo quis questionar imediatamente o cálculo das aposentadorias dos funcionários públicos, para que se equiparassem em número de anos aos assalariados do setor privado, e isso provocou descontentamento.
Sobretudo, ele declarou sua intenção de mudar a aposentadoria dos assalariados dos serviços públicos como as ferrovias, os transportes urbanos e outros, que representam cerca de 20% dos total do setor público. Foi essa medida que provocou a explosão.
Em especial os ferroviários, que têm direito à aposentadoria entre os 50 e 55 anos de idade, sentiram-se ameaçados, e é certo que uma medida impopular assim precisa ser separada de um debate sobre a Previdência. Foi em torno dos ferroviários que a greve se organizou e que foi mobilizada uma defesa do Estado social e administrativo, protetor e corporativista.
No momento em que faço esta análise, duas observações se impõem: a contestação defende interesses adquiridos e protege sobretudo a gestão do setor público, que, não obstante, é fonte de pesados déficits, mas é culpa do governo por haver concentrado o confronto na defesa dos interesses mais sensíveis e aqueles que a população compreende melhor.
Pode-se, portanto, hesitar sobre a avaliação a fazer: sim, o modelo francês de gestão social é ineficiente e é preciso reformá-lo sem mexer nas garantias dadas pela Previdência social. É preciso, especialmente, reformar as aposentadorias, por razões demográficas evidentes. Mas é insensato fazer cortes tão brutais nos regimes de aposentadoria estabelecidos há muito tempo e que não podem ser modificados sem compensações.
Mas o conflito se radicalizou mais, e mais rapidamente, do que esta análise é capaz de explicar. Existe, portanto, outro componente importante no conflito.
Vale lembrar, em primeiro lugar, a perda de confiança no governo. Há mais de 12 anos os franceses vêm aceitando uma política ortodoxa, sob governos tanto de esquerda quanto de direita, na esperança de uma reparação econômica e, especialmente, de uma queda no índice de desemprego.
Mas se decepcionaram, primeiro com Edouard Balladur e mais ainda, recentemente, com Jacques Chirac, que depois de fazer uma campanha presidencial populista não demorou a reverter a uma política de austeridade imposta pela proximidade das decisões européias sobre a moeda única.
A população francesa não suporta mais o monetarismo triunfante que sacrifica toda a vida econômica e social à construção da moeda européia única, com certeza muito necessária, mas que não é capaz de resolver todos os problemas por si só.
É impossível não dar razão à população, especialmente quando se leva em conta que as deduções impostas aos assalariados são comparadas por eles ao enriquecimento dos mais abastados, à corrupção de alguns e aos custosos erros de administração de determinadas empresas públicas.

LEIA
a continuação do artigo à pag. 1-30 e sobre a greve na França à pag. 1-31

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