São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Tempo de reflexão, tempo de ação

PIERRE SANÉ

Na última vez que escrevi nesta página, em abril, eu havia acabado de retornar de uma visita ao Brasil e estava impressionado com o abismo imenso entre as diferentes línguas e os diferentes discursos usados neste país. A linguagem dos direitos humanos, falada pelos políticos, e a linguagem das violações dos direitos humanos, nas ruas.
Enfatizei então a necessidade de uma ponte que cruzasse esse abismo o mais rápido possível. E sugeri que um Plano Nacional de Ação pelos Direitos Humanos, feito com a participação das autoridades federais e estaduais, mais entidades representativas da sociedade civil, contribuiria para a construção dessa ponte, unindo todas essas vozes diferentes em prol de um objetivo comum.
Muita coisa aconteceu desde então. O aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos oferece uma oportunidade para reflexão. Esta semana o presidente da República assinou uma lei que reconhece a morte dos "desaparecidos" e prevê compensações para suas famílias e as daqueles que morreram sob custódia militar ou policial durante o regime militar.
É um passo corajoso no caminho da conquista dos direitos das famílias à verdade, à justiça e a uma compensação, embora ainda seja preciso atingir a verdade e a justiça. O presidente FHC dedicou seu discurso de 7 de setembro à questão dos direitos humanos, que ele qualificou como "o novo nome da luta pela liberdade e democracia", e aproveitou a oportunidade para anunciar que o Brasil iria traçar um Plano Nacional de Ação pelos Direitos Humanos, com o envolvimento da sociedade civil.
Já foram promovidos seminários públicos em São Paulo, Rio e Recife, e a divulgação do primeiro esboço estava prevista para hoje. O Brasil tomou outro passo inusitado ao concordar com a primeira visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, realizada esta semana.
Trata-se de um passo positivo, que aproxima o país dos mecanismos criados por países da região para a proteção e a promoção dos direitos humanos. Contudo o Brasil ainda precisa aceitar a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos e assinar o Protocolo Opcional do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, relativos a procedimentos de apelação.
Enquanto isso muita coisa também vem acontecendo nas ruas. Outro massacre chocou a opinião pública nacional e internacional, desta vez em Corumbiara, e, além das mortes, uma explicação sobre o paradeiro de 11 pessoas ainda é devida. Mais brutalidade policial marcou despejos de posseiros, como em Santa Isabel do Ivaí (PR).
Ao mesmo tempo o espectro das prisões políticas ergueu sua cara feia nas acusações de "formação de quadrilha ou bando", usadas em diferentes Estados para deter aqueles que fazem campanha pela reforma agrária. Esquadrões da morte policiais prosseguem em suas atividades no Rio Grande do Norte, no Mato Grosso do Sul etc. Denúncias de tortura ecoam de um canto ao outro do país, enquanto a situação nas prisões continua crítica. O nível de violência arbitrária contra os favelados no Rio de Janeiro vem subindo, com invasões, espancamentos e tiroteios, nos quais são envolvidos residentes inocentes.
O mais claro exemplo dessas contradições talvez seja o caso de Caio Ferraz, coordenador da Casa da Paz em Vigário Geral (RJ), que acaba de receber o prêmio de direitos humanos do governo, mas não pode ir para casa devido às ameaças que ele e sua família vêm recebendo.
Num momento em que o movimento pelos direitos humanos procura não apenas denunciar violações, mas também fazer propostas construtivas, não se pode permitir que tal desprezo a nível local pelo combate à violência por meio da educação apague a esperança.
Qual é então a origem dessa idéia de um plano de ação que tente resolver esses conflitos e transpor esse abismo?
É uma recomendação específica da Conferência Mundial dos Direitos Humanos da ONU, realizada em Viena em 1993, que reafirmou a universalidade dos direitos humanos e cujo comitê de redação foi presidido pelo Brasil.
Isso é também parte de um esforço global para colocar os direitos e a dignidade do indivíduo e dos povos em primeiro plano nas agendas dos governos e de assegurar a participação substantiva da sociedade civil no debate de um plano de ação e no acompanhamento crucial de sua implementação.
E quais são alguns dos temas principais desse acordo? Grandes reformas na estrutura e cultura das polícias, na administração da justiça, na proteção das vítimas, testemunhas e defensores dos direitos humanos, categoria que inclui promotores e juízes que se tornam alvo de ameaças quando procuram firmar uma posição contra a impunidade.
E o que a Anistia Internacional tem a ver com tudo isso? Esse movimento mundial apenas procura assegurar que os países respeitem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo aniversário é comemorado hoje, e seus instrumentos de proteção adotados e ratificados por muitos países.
Seu papel consiste em acompanhar o cumprimento das obrigações pelos governos, em documentar violações, fazendo recomendações, trabalhando em casos individuais e pedindo aos governos que levem essas preocupações a seus pares. Assim, quando o presidente FHC visitar a China amanhã, esperamos que ele leve a seus anfitriões o caso do prisioneiro de consciência Wei Jinsheng, entre outros.
Hoje, em São Paulo, a seção brasileira da Anistia é sede de uma reunião da nossa Rede de Ação Urgente Latino-Americana. Essa rede é um dos meios que usamos para rapidamente mobilizar pessoas no mundo inteiro em defesa dos que correm risco de tortura, "desaparecimento" ou execução.
O primeiro beneficiário dessa ação, um professor universitário brasileiro que acredita ter sido salvo pelos apelos em seu favor quando estava sendo torturado sob custódia dos militares, em São Paulo, em 1973, sem que nem sequer sua detenção fosse admitida, participa da nossa reunião. Na semana passada 15 apelos foram lançados e distribuídos a membros em 84 países em prol de 414 indivíduos nos EUA, Zaire, Turquia, Bolívia, Guatemala, China, Irã, Brasil, Ruanda, Colômbia, Peru, Cazaquistão, Paquistão, Ucrânia e Myanma.
Enquanto celebramos o dia dos direitos humanos, esperamos que os brasileiros sejam não apenas participantes ativos no processo de melhoria da proteção e promoção dos direitos humanos em seu país como também se tornem participantes nos esforços mundiais para assegurar que esses direitos sejam respeitados em toda parte. A Anistia Internacional no Brasil oferece a todos os brasileiros oportunidades de ação solidária internacional.

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