São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Direitos humanos: luta contínua

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Dezembro é o mês dos balanços. E o dia 10, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, obriga-nos a perguntar como foi o ano que passou. Três dias após o presidente da República entregar o Prêmio Nacional de Direitos Humanos ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, dois de seus militantes em Recife são assassinados. Que lição tirar dessa sucessão de eventos tão próximos e tão díspares?
A postura do governo federal em relação aos direitos humanos se tornou mais clara e definida. O trabalho escravo, a opressão do negro, a prostituição infantil, a exploração do trabalho infantil, a violência policial, a denúncia da tortura, a proteção das testemunhas passaram a integrar a pauta oficial e a inspirar ações. A dilacerante questão dos desaparecidos políticos, por meio da ação do Ministério da Justiça e de José Gregori, foi bem encaminhada.
Pondo em prática uma determinação do Programa de Ação de Direitos Humanos de Viena, 1993, o presidente Fernando Henrique Cardoso assumiu no dia 7 de setembro o compromisso de lançar um Plano Nacional de Direitos Humanos. Num processo preliminar coordenado pelo Ministério da Justiça desde outubro, de coleta de propostas, com mais de 200 centros de direitos humanos e três workshops no Recife, Rio e São Paulo, um texto preliminar foi preparado. Em breve, após exame dessa minuta, o ministro Nelson Jobim, conforme anunciou, deverá abrir um amplíssimo processo de consulta a organizações da sociedade civil e entidades internacionais de direitos humanos.
O Plano não será a vara de condão que fará cessar magicamente as graves violações de direitos humanos. Mas uma novíssima dinâmica na área está sendo aberta, da preparação à execução do plano, na perspectiva de que os direitos humanos são direitos de todos e não privilégios para algum grupo.
Somente com a consolidação de uma cultura de direitos humanos as violações poderão cessar. Se muitas iniciativas normativas caberão ao governo, uma infinidade de ações serão de responsabilidade da sociedade civil.
O tempo dos direitos humanos muito avançou na esfera federal, mas nos Estados quase tudo segue como antes. O nó fundamental é a dificuldade de implementação institucional das garantias constitucionais. Como o Brasil está instalado na legalidade plena do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, ratificados todos os grandes tratados e convenções, o contraste entre a aceitação dos compromissos e sua realização é dramático.
A implementação desses direitos reconhecidos é fraca porque há um largo descompasso entre a letra do texto e o funcionamento das instituições. O Judiciário brasileiro, com apenas 6.000 juízes, é largamente insuficiente, fora do acesso da população pobre, moroso. O Ministério Público, tanto estadual como federal, padece das mesmas limitações estruturais. As polícias, tanto civil como militar, têm profundas carências de recursos e de formação profissional.
Já está mais do que evidente que a expectativa de impunidade assegurada pelo foro especial da Justiça das polícias militares para os crimes comuns deve passar para a Justiça civil.
Além do precário funcionamento das instituições, há diferenciais de respeito ao império da lei entre os Estados, que devem ser levados em conta para ter-se um quadro mais preciso da situação: em alguns Estados do Norte, como o Acre, reina a ilegalidade, ativistas de direitos humanos vivem sob ameaças. Se as organizações da sociedade civil quiserem ir além das denúncias anuais rituais, precisam aprofundar a análise institucional, fazer avaliações rigorosas do desempenho de governos estaduais e instituições, para que reformas e ações emergenciais sejam desencadeadas.
Para medirmos os bloqueios e os avanços é inevitável olhar para trás e compararmos o quanto caminhamos. Depois de termos aprendido com a comunidade internacional a monitorar as violações, a pressionar os governos a reconhecerem a gramática dos direitos humanos, a criarem burocracias que operem a promoção desses direitos, deve-se reconhecer que os dez anos de democracia no Brasil aproximam-nos dessas exigências.
A vitimização das populações pobres e das periferias das megacidades, seu cotidiano dominado pela opressão do crime violento e organizado, sem proteção policial, as chacinas e linchamentos lembram-nos a cada dia que não bastam esses avanços. Mas a revolta diante desses horrores e a ação de denúncia, a cobrança, não devem desconhecer o que governo e mobilização da sociedade civil conseguiram realizar. Para não nos desqualificarmos a nós mesmos e a nossas lutas. Pois a realização dos direitos humanos é luta contínua.

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