São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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uma galinha para Clarice

MARILENE FELINTO

Para me convencer a criar gosto por mim mesma, um homem me deu uma vez, certo dia de dezembro, um cartão com uma lista de nomes de mulheres maravilhosas (palavra dele) que nasceram nesse mês (ou eram desse signo): Christina Rossetti, poeta inglesa (5/12/1830); Clarice Lispector, maior escritora brasileira (10/12/1925); Emily Dickinson, poeta americana (10/12/1830); Jane Austen, escritora inglesa (16/12/1775); Florbela Espanca, poeta portuguesa (8/12/1894)).
Não me lembro se a lista reforçou minha auto-estima, mas me fez guardar na memória a coincidência. Passei-a adiante, para uma amiga também de dezembro, perguntando se seríamos parelhas de mulheres tão ótimas, e já sabendo que ela, sim, é disparado melhor do que eu.
Toda essa introdução para dizer que hoje, se fosse viva, a melhor escritora brasileira de todos os tempos faria 70 anos: Clarice Lispector, que adorava galinhas. Há controvérsia quanto à data precisa de seu nascimento, mas numa história chamada "Dia Após Dia", a própria Lispector diz: "Sou sagitário e escorpião, tendo como ascendente aquarius. E sou rancorosa. (...)".
Sei que fizeram-se homenagens mundo afora (na Alemanha, na França). Justa comemoração dos fãs-clubes acadêmicos (normalmente femininos) da obra clariceana -ainda que eu nutra certa resistência a mulheres acadêmicas, porque elas têm mania vampiresca de se apropriar do assunto que estudam, como se fosse uma fonte de vida, um objeto, um filho.
Minha homenagem é mais simples, só quero oferecer uma galinha de presente ao meu primeiro ídolo literário, que descobri adolescente, lendo "O Lustre", em 1977 (ano em que ela morreu). A mesma "galinha de domingo", que "não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. (...) Nunca se adivinharia nela um anseio. (...) Estúpida, tímida e livre". A mesma galinha que "é um ser" e "é verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista".
Estranho que a maioria dos homens não tenha paciência para ler Lispector. "Vai ver, ela é muito profunda", um deles me disse, em tom de brincadeira cafajeste. Deve ser inveja, certo sofrimento diante da constatação de que existe uma mulher fazendo algo tão bem quanto ou melhor do que eles. Uma possível síndrome de crise da crista.
Minha galinha teria bico e penas como todas, com a diferença de que traria uma novidade: a descoberta científica sobre seus dentes. Cientistas provaram que as aves modernas são desprovidas de dentes provavelmente porque o mesênquima (tecido interno) do embrião de pinto perdeu a habilidade de formar dentina. Demonstraram que, quando combinado o mesênquima de camundongo com o epitélio (tecido externo) do embrião de pinto, há formação de dentina.
Se soubesse que as galinhas ainda podem voltar a ter dentes, Clarice Lispector talvez escrevesse para nós mais uma história (como presente do meu próprio aniversário sem gosto), continuação da genial "A Quinta História" ("Leibniz e a Transcendência do Amor na Polinésia"), quem sabe. Talvez começasse assim: "Era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos", mas só que tinha dentes, mordia o mundo.

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