São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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CAIO TÚLIO COSTA

O padrão "branco" dá as cartas e o "racismo cordial" segue hipócrita e falsamente tolerante
Passou despercebido para a grande maioria mas este foi o ano de revelação do "racismo cordial". Ele marca a sociedade brasileira, como sugere, sem subterfúgios, o título de pesquisa publicada pela Folha e disponível em livro (editora Ática) ou na Internet (no endereço do jornal).
Sua enunciação clara ajuda o brasileiro a se conhecer um pouco melhor -sem abalar os mistérios que fazem da sua índole símbolo de identidade única e, talvez por isso, incompreensível para os puritanos do Primeiro Mundo.
Nessa trilha, não apenas a do racismo, mas a da diversidade cultural, reuniram-se alguns pesquisadores, publicitários e jornalistas em Salvador, cidade de alma negra, num sábado quente em meados de novembro. Ali se falou não somente de negros, mas também de outras minorias, como a dos ameríndios.
No encerramento dos debates, havia-se aprendido muita coisa: a identidade pode ser ilusória; a transparência da mídia torna tudo possível (e a falsa transparência torna tudo opaco); a democracia não se confina mais aos mecanismos tradicionais de representação (Parlamento, Executivo, sociedade civil...); as modernas formas de comunicação prometem mais possibilidades de conhecimento das diferenças culturais e de costumes, e, por isso mesmo, a mídia pode deixar de ser um caminho de mão única.
No encontro, promovido por uma organização que trabalha há 22 anos pelo reconhecimento da diversidade, a Secneb (Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil), o momento solene, porém, aconteceu menos por conta do brilho das formulações dos intelectuais presentes do que por uma singular apresentação no encerramento.
Numa sala de convenções do hotel Tropical, refrigerada, submetida à luz fria das lâmpadas fluorescentes e à formalidade acadêmica da mesa dos debatedores, houve pausa para a música, para a voz de uma negra.
Inaicyra Falcão dos Santos, cantora lírica, professora de coreografia, pesquisadora, na Unicamp, das tradições africano-brasileiras na educação e nas artes performáticas.
Entoou spirituals e orikis. A força da música e de seus olhos mirando cada par de olhos de cada ser ali presente tiveram mais eloquência que qualquer debate. Toda uma história, legítima, resplandecia nos compassos, em cada nota de um som prometendo força aos presentes para prosseguir no movimento pelo respeito e pela coexistência sadia.
A música, no caso, exprimiu a singeleza da diversidade. O poder do spiritual, expressão da raça negra, se não é suficiente para mostrar o quão criadora pode ser uma cultura, ao menos força o respeito por ela.
Em conclusão, a revelação: se a música, por ser mágica, aproxima, a sociedade, por ser transparente, exclui.
O padrão "branco" dá as cartas e o "racismo cordial" segue hipócrita e falsamente tolerante, confortável nos limites que as classes abastecidas criaram para si mesmas em seu isolamento social.
Por um momento, eu vi alguns intelectuais juntos, brancos e negros, preocupados com aquilo que o documento final do encontro pediu para que todos fossem: "mediadores e multiplicadores" sociais de diversidade.
Objetivo: tornar mais visível a presença dos excluídos da cena social e do poder de decisão.
Não será fácil.

"Academia 1" (1968), obra de Marcel Broodhtaers

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