São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Isabelle, beleza da ambiguidade

CECÍLIA SAYAD

A ambiguidade sempre foi a marca dos personagens interpretados pela atriz francesa Isabelle Huppert, 41. Não é diferente em "A Separação", estrelado por ela e por Daniel Auteil (o rei de Navarra de "A Rainha Margot") e dirigido por Christian Vincent. No filme, com estréia prevista para janeiro no Brasil, Isabelle e Auteil vivem um casal que tenta salvar um relacionamento deteriorado, debatendo-se ante a possibilidade do divórcio. A atriz, que esteve no Rio em 1994, ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano por "A Cerimônia", de Claude Chabrol, e é mais conhecida do público brasileiro como a ex-freira que escrevia contos pornôs em "Amateur", do norte-americano Hal Hartley. Foi sobre "A Separação" e sua concepção de atuação que Isabelle falou em entrevista à Revista da Folha por telefone, de Paris.

Em uma entrevista à revista "Première", você disse que não queria renunciar a nenhuma parte de si mesma quando atuava, que tinha prazer em ultrapassar os limites redutores dos personagens. Isso os torna mais reais?
Sim, claro, pois quando encaramos um personagem como pessoa, e não como personagem, podemos lhe dar a complexidade de uma pessoa, toda uma gama de emoções e de contradições. A noção de personagem é muito limitativa e a essência da arte dramática consiste em impor uma pessoa -no caso, eu mesma- além do personagem. Não gosto de abandonar nenhuma das direções e possibilidades que um papel pode me oferecer. Isso me leva a papéis e interpretações que privilegiam a ambiguidade. Quero que o personagem exista como forma de questionamento. Minha preocupação é me aproximar da verdade.

Muitas vezes, você guarda uma distância crítica com relação aos personagens que interpreta, como se, por momentos, eles se mostrassem ausentes. Por quê?
Deve-se guardar uma certa distância com relação ao personagem, seja ele dramático ou cômico. É a minha concepção de interpretação. Esta distância deixa um espaço para que o espectador possa criar uma visão própria a respeito do personagem. Gosto de imprimir minha marca, mas também de deixar um espaço vago, o que nunca dá ao papel uma definição muito precisa. Os personagens que interpreto nunca são totalmente bons ou maus. Isso os aproxima da vida real.

Você discutiu muito sobre o seu personagem em "A Separação" com o diretor Christian Vincent, antes de começar as filmagens?
Não especialmente. Lemos o roteiro uma ou duas vezes antes das gravações. Vincent tem uma sensibilidade muito grande com relação a esta questão da verdade. Num filme como "A Separação", com diálogos que possuem certa dose de humor e leveza -ainda que haja elementos mais dramáticos-, existe sempre o risco de, em nome de uma certa verdade, se cair na caricatura. O naturalismo pode facilmente ser caricatural. Por essa razão, o trabalho com Vincent esteve sempre atento a isto.

Vocês improvisaram muito durante as filmagens?
Os diálogos eram muito respeitados. Mas os silêncios, as rupturas, o que eu chamo de "pequenos acidentes de cena", sim, podemos dizer que eram improvisação. Isso é possível em filmes em que se reproduz essa impressão de naturalidade quase documental, como em "A Separação".

Qual a sua relação com o diretor? Você prefere quando ele dá muitas orientações ou quando a deixa mais livre?
Eu não gosto quando um diretor fala muito. Um bom diretor deve respeitar o campo de ação do ator, que convive com o campo de ação da câmera. O ator deve encontrar seu espaço, dentro do qual deve ser completamente livre. Cabe ao diretor saber onde parar de dar indicações.

Você nunca pensou em dirigir um filme?
Por enquanto, não. As pessoas me propõem isso às vezes, mas estou satisfeita como atriz. Talvez um dia ainda o faça, mas é uma tarefa muito desgastante, e eu não sinto que tenha uma alma de autor. Gostaria, eventualmente, que alguém escrevesse um roteiro e me propusesse de dirigi-lo.

Voltando ao filme, você não concorda que os personagens de "A Separação", na maior parte do tempo, implodem ao invés de explodir?
Completamente. Mas essa é uma marca da nossa época: nesse momento, as pessoas implodem ao invés de explodir. Hoje, tudo é mais interiorizado. Além disso, o cinema é um meio mais apto a explorar a implosão do que a explosão.

E no teatro, seria o contrário?
O teatro, depois de um certo tempo, incorporou uma maneira de interpretar mais comedida, um pouco influenciado pelo cinema. Não se interpreta mais no teatro da mesma maneira que se interpretava 30 anos atrás. É difícil para o ator de teatro incorporar esta nova maneira de interpretar e, ao mesmo tempo, respeitar as condições do teatro, que exige elementos como impostação de voz. Mas se pode atuar no teatro de maneira mais comedida também.

Você prefere fazer cinema a teatro?
Gosto dos dois. Faço trabalhos muito pesados em teatro, como "Orlando" (peça dirigida por Bob Wilson), que apresentei 135 vezes. O cinema é uma espécie de respiração, é mais leve. Eu não conseguiria fazer peças como faço filmes. O teatro deve ser uma aventura excepcional, uma espécie de utopia, de exceção -quando não é assim, me interessa menos.

Os personagens que interpreta intervêm na sua vida enquanto você está filmando?
Não, absolutamente. Aliás, eles não intervêm no momento das filmagens, mas muito tempo depois. É sempre o mesmo processo: depois que as filmagens terminaram, que o filme ganhou vida própria e virou um objeto para os outros, eu me dou conta de que o personagem me atravessou, de que houve uma fusão entre mim e ele.

Tem algum personagem, na literatura ou no cinema, que você nunca interpretou e gostaria de interpretar?
Não especialmente. Estou sempre à procura de um grande papel, mas não especialmente para fazer o personagem em questão. Muitas vezes, sonho com um papel que nunca vou interpretar, para incorporá-lo em um outro personagem.
Como o público recebeu "A Separação" na França?
Bem, muito bem.

Como é sua relação com o público?
Não tenho idéia, acho que não é muito ruim. As pessoas não assistem a todos os meus filmes, ou melhor, nem todas assistem aos meus filmes. É uma relação meio distante. Eu sou uma atriz conhecida, mas não estou certa de ser uma atriz popular.

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