São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 1995
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Nunca será possível ignorar os Beatles

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

Leitor intelectual: não espere que "Os Beatles" ("The Beatles Anthology") lhe ofereça qualquer abordagem reveladora sobre o que os Beatles representaram para a cultura ou para a sociedade ocidentais contemporâneas.
Leitor beatlemaníaco: não aguarde que "Anthology" lhe dê nenhuma informação que você ainda não saiba sobre os Beatles. No máximo, curta algumas cenas de filmes domésticos que você nunca viu antes.
Leitor comum nascido entre 1945 e 1965: prepare o seu coração para ver "Antologia e lembrar grandes momentos vividos ao som dos Beatles, se sentir envelhecido e refletir sobre o futuro.
Leitor comum nascido depois de 1965: aprenda com "Anthology" que videoclipe é uma arte bem mais velha do que você imagina e conheça a história do mais importante conjunto de música popular da história.
Qualquer leitor: consiga silêncio em sua casa, ligue a TV e curta em "Anthology" algumas das mais bonitas canções já compostas neste mundo.
"Anthology", a história oficial dos Beatles para a TV, é um excelente documentário feito na Inglaterra, o país que melhor desenvolveu esse gênero telejornalístico.
Sob o ponto de vista de edição, "timing", seleção de imagens, direção de TV, é nada menos do que perfeito.
Mas o conteúdo deixa muito a desejar. Primeiro, pela quase absoluta falta de contexto. É como se os Beatles tivessem sido um mundo em si mesmos. Nem do ponto de vista musical eles são comparados a ninguém.
Segundo, pela evidente intenção de mexer o mínimo possível nas feridas. Os assuntos polêmicos (Yoko, dinheiro, inveja, drogas) não chegam a ser censurados, mas são circunavegados.
Para evitar confrontos, o filme não tem narrador nem texto, exceto o dos depoimentos, que se superpõem em exata ordem cronológica.
Mas os conflitos estão lá, de qualquer maneira. Na insegurança de Ringo, no ressentimento de Paul, na amargura de George, que se expressam de maneira mais ou menos velada ao longo dos seus testemunhos.
O documentário levou quatro anos para ser feito. Partiu de um projeto terminado em 1970, mas nunca divulgado por causa das disputas entre os quatro pelo espólio dos Beatles.
Quando eles resolveram retomá-lo, houve consenso de que o documentário era muito mcartneyiano, a começar pelo título ("The Long and Winding Road", título de uma de suas baladas).
Como Lennon não existia mais e sua representante, Yoko, parecia mais interessada em impedir a divulgação de incoveniências para ela do que em influir na forma final do programa, procurou-se balancear Paul com George.
Mas a nova versão forçou a barra demais a favor de Harrison, como ele próprio apontou. Veio então um trabalho adicional para repor as coisas em perspectiva: John e Paul mais importantes que George -e Ringo, pobre Ringo.
Mas é Ringo quem melhor se sai no final. Ele é o único que manteve o bom humor que tanto marcou a cultura beatle. É quem ainda se emociona, sente saudade, respeita o que fez: "Foram momentos mágicos".
A imagem que George transmite é de um certo cinismo: "Os fãs deram dinheiro e gritos para os Beatles, mas os Beatles deram o seu sistema nervoso para os fãs, o que é muito mais difícil".
Paul, com sua patética cara de bebê envelhecido (com o tempo, vai se tornar uma espécie de Mickey Rooney do século 21), passa um ar "blazé", de quem parece dizer: nada teve muita importância, mesmo.
O fantasma de John, que sobrevoa todos os sobreviventes, é o mais realista: acabou, acabou, diz ele de algum lugar do passado, quando instado do presente a avaliar o que foram os Beatles.
Resumo da ópera: veja "Anthology". Vale a pena. Nunca foi e nunca será possível ignorar os Beatles.

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