São Paulo, terça-feira, 12 de dezembro de 1995
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E Don Giovanni fez o milagre do peixe

MATINAS SUZUKI JR.
EDITOR-EXECUTIVO

Meus amigos, meus inimigos, confesso que caminhei, no domingo, para o vale do Pacaembu como uma espécie de porta-bandeira de todas incertezas.
(Você sabe, baby, quando a sua cabeça é uma medusa de deliciosas perplexidades e a chave dos mistérios é alguma coisa que te seduz: quanto mais dúvidas sobre o resultado do jogo, maior era o poder de imantação do velho estádio Paulo Machado de Carvalho, palco de tantas epopéias, sobre este amador do fut.
Além disso, na véspera, houve a linda homenagem de Caetano Veloso à São Paulo, e eu, insone a contragosto, havia lido muito Cortázar e Vinícius de Moraes, que, aliás, era Botafogo, e esta combinação de Caetano, Cortázar e Vinícius amolece mais o meu mole coração).
A dúvida não incidia sobre a ciência, a manha, do Santos em obter a tripleta de gols que o levaria afinal à final do evento que escreve as linhas tortas do cardiograma da sensibilidade brasileira.
Com toda devoção ao tricolor da bela Laranjeiras, e a alguns dos seus torcedores que gosto tanto, bastava clicar o diretório Santos para conferir que ele já havia marcado os três gols mágicos no Flamengo, no Corinthians e no Botafogo. Por que não no Nense? Seria "non sense"?
Minha dúvida, muito cortaziana e bem pouco cartesiana, era a seguinte: o Santos teria a fibra, a moral e o controle emocional (três atributos encarnados na figura do principal guerreiro adversário, Renato, não por acaso, Gaúcho) para marcar um, dois, três e não sofrer nenhum?
Quando chego às cadeiras cobertas, à platéia preferida dos nossos vaudevilles, vejo que a torcida havia transformado nosso petit Pacaembu, um acolhedor estádio de bolso, em um imenso Coliseu branco (a dimensão da arquitetura, muitas vezes, está na cabeça das pessoas), à espera do crepúsculo histórico.
Aquela grande colcha de retalhos brancos (lenços, camisas, faixas), a não deixar saudade nenhuma das grandes bandeiras da marginália organizada), aquele enorme Sim na alma, aquela confiança irrestrita e antecipada de quarenta mil amantes fixos e ocasionais (contei inúmeros são-paulinos, palmeirenses e corintianos infiltrados na magnética santista; além dos novos convertidos, os novos Testemunhas de Giovanni), me deram a certeza de que assistiríamos ao milagre da multiplicação do peixe.
Todos os alambrados do mundo não impedirão uma magnética aguerrida de entrar em campo junto com os seu jogadores. A torcida tem força real no futebol. (Que o Fluminense tenha sofrido duas grandes derrotas para duas torcidas paulistas -a outra foi aquela da tomada do Maracanã pelos corintianos- me faz pensar que este time tenha algo de sobrenatural que me ajuda a entender a paixão de Nélson Rodrigues por ele).
A torcida pegou no fígado do Flu. Atordou-o. Don Giovanni, que assumiu realmente a sua dimensão mozartiana como sedutor absoluto da inconquistável bola, executou-o como o mais perfeito e elegante dos toureiros.
O Pacaembu esperava nada menos do que um crepúsculo de deuses. E Giovanni, herói de uma geração, sabia disso. Ele tinha tudo a ver com o peixe.

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