São Paulo, terça-feira, 12 de dezembro de 1995
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Grampos mostram a doce vida do poder

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ninguém se interessou pelos momentos mais banais dos diálogos grampeados do embaixador Júlio César. No entanto, ali estão indícios preciosos de nossa vida política. Nos adjetivos, nas pausas, nos doces palavrões que florescem estão os segredos do fino balé entre os ricos e poderosos e os burocratas, estão as impalpáveis gorjetas, os pequenos favores, as mesuras, as promessas, o assédio sexual do poder. Diálogos preciosos; mix de Bernard Shaw com revista "Caras".
Júlio César conversa com Assumpção (o lobista da Raytheon):
Assumpção - Eu falei para Raytheon que tinha convidado você para ir e eles estão convidando você para dois eventos...
Júlio César - É lá em Las Vegas?
Assumpção - É em Las Vegas...
JC - Tá ótimo... Tá certo...
A - Então, tudo certinho...
JC - Tá tudo certo, perfeito... A - Eu estarei em Miami te esperando...
JC - Perfeito, não há dúvida...
A - Você vai chegar sábado... No domingo nós vamos a Las Vegas... O avião vai estar em Brasília à sua disposição... Vou pôr um jantarzinho nele, um vinhozinho daqueles, tá bom?
(A visão brasileira de felicidade sempre arriba em Miami ou Las Vegas, do lado americano, ou desaba em arrotos de "experts" nos restaurantes de Paris ou Bruges, sob olhar irônico dos "maitres d'hotel". Por que Las Vegas e Miami? Talvez a atração pelas cascatas de ouro de neon ou pelos shorts verde-e-rosa da beira mar tropical? Miami como um monumento ao cafajestismo poético? Nos EUA, eles riem alto. Na Europa, discutem vinhos e acabam sempre elegendo o "Petrus" como nº 1. Outro ponto a notar: a doçura do tratamento. Como se valoriza a amizade na política brasileira... "Meu velho, meu amigão, querido" são os bordões da cordialidade. As conversas sempre fecham num adoçamento arredondado: "tudo certinho, tudo perfeito, nada escapa do controle, tudo bem." E tudo, sempre, em jatinhos. PC tinha jatinhos, Assumpção tem jatinhos, caronas em jatinhos, Gilberto Miranda ia ganhar um. Este período será conhecido como "os anos dos jatinhos do mal".
Notar também o largo uso do diminutivo: "jantarzinho, vinhozinho", português arrebicado. Parece Eça.)
"Chefs" em competição
Conversa entre JC e o embaixador Frederico Araújo, da Bélgica: Frederico - Estou sendo obrigado a escolher o menu dos jantares (na visita de FHC à Bélgica).
Júlio - Vou te dar uma sugestão... Pede aos restaurantes uma opção entre carne e peixe...
Frederico - No primeiro dia, ele (o presidente) vai comer "coq au vin", que a empregada do Bernardo faz muito bem... Mandei servir, depois da sobremesa, "plateau de fromages", porque eu vi ele (FHC) se empapuçando de queijo (risos). Depois, no dia seguinte, como tem o Itamar que já foi comer 'coq au vin', vou mandar fazer um chateaubriand para ele, como prato principal... Depois no restaurante Borgonha, pato. E no último dia, tem opção entre linguado e carneiro.
JC - Não se esqueça que um dos pratos típicos e gostosíssimos da Bélgica são as "bomis".
Fred - Pois é, mas nenhum destes míseros restaurantes têm "bomis" (...) Tem também o problema complicado de relação entre Lúcia Dauster e Lenir Lampreia. JC - Ah, é?
Fred - Não se falam...
JC - Não posso acreditar...
Fred - Mas eu já botei cada uma numa mesa...
(Os embaixadores como "maitres d'hotel". Na deliciosa conversa, parecem dois "chefs" em sutil competição. Nota-se também uma tênue agressividade contida contra FHC, sociólogo investido de súbito poder que, ansiosamente, se atiraria a "bries" e "camemberts". Itamar é tratado como reles mineiro, amante de pães de queijo e torresminhos. Será condenado a um bife. Mais adiante, ainda falam dele: "avisa Itamar que ele tem de pagar do próprio bolso". Saudável sinal de poupança, denotando não sei se sobriedade de gastos ou falência do Estado. Depois, nos restaurantes, a vida fica dividida em apenas três opções, aliás, como sempre: peixe, carne ou ave.
Adiante, a guerra entre Lenir e Lúcia nos dão um sangrento lampejo das rivalidades nas embaixadas, entre cristais e casacas, unhas e bolsas "Chanel" cheias de venenos. Notar leve anglicismo em "Não posso acredita"r (I can hardly believe).
Intoxicação por lagosta Conversa entre JC e José Maurício Bicalho, da Andrade Gutierrez:
JC - Oi, Zé, tudo bom?...
Bicalho - Eu tô horrível... comi um negócio que me fez mal ontem, passei a noite no banheiro... Lagosta ou peixe...
JC - Ah... meu velho,... é foda... isso no Rio é foda... faz calor... Eu telefonei semana passada... pelo seguinte... No México, o presidente Zedillo vai investir US$ 250 milhões em obras...
Bicalho - Beleza...
JC - Eu sei que é uma merda, 250 milhões...
Bicalho - Meu filho, isso é um dinheirão hoje... (...)
JC - Pois eu vou ser o próximo embaixador no México... (...) Pois é, rapaz, diz que passou muito intelectual e tá na hora de agir...
(Notar mais um acidente burguês: a intoxicação por lagosta ou peixe. Com lagosta, a diarréia é mais cara. Júlio na mesma hora retruca com claro desprezo por coisas tropicais ("no Rio, é foda!"), logo ele que ia faturar um lobby no indigesto México, poluído e cheio de tortillas venenosas. Notar que a desinteria (piriri) do Bicalho fez Júlio lembrar dos 250 milhões de dólares em obras. Terá sido associação com o verbo "obrar" que Júlio, de norma culta, poderia saber? Notar também a sutil rima entre a lagosta defecada e o termo "merda", referente aos milhões de dólares, em torno dos quais Júlio tenta ostentar uma convivência com bilhões, acima daquela "micharia", logo contestado pelo Bicalho, atento defensor de uma austeridade ostensiva... ("hoje tudo é dinheiro")... Em seguida, uma referência velada e rancorosa ao falecido Merquior, intelectual que foi embaixador no México e que devia desprezar JC do alto de sua erudição)
"Sacana" Conversa entre JC e Gelson Badejo, seu amigo e hóspede.
JC - Aqui em casa, vocês podem ficar...
Badejo - Não... não...
JC - Claro que sim... É só você trazer aquela menina que tava na tua cama lá em Colônia do Sacramento (risos). Você fica com meu primo, que eu fico com ela (risos)
Badejo - Você não vale nada mesmo.
JC - Tá bom, seu sacana...
(Notem como o nome "Badejo" cai bem depois de lagostas e linguados. A conversa é floreada de risos machistas e eróticos. Imaginamos, com despeito, a doce vida de luxo e devassidão que Badejo levava em Sacramento e notamos também a inveja de JC que, dedicado diplomata, não tinha tempo de comer ninguém. Tudo termina com carinhosos xingamentos ("sacana" e "não vale nada") que definem a beleza de vidas sacrificadas ao poder, mas regadas por uma sensualidade barroca e matreira. Mais eu teria a dizer. Mas falta-me espaço.)

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