São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 1995
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Scliar publica reunião de 'choques elétricos'

ELVIS CESAR BONASSA
DA REPORTAGEM LOCAL

O volume "Contos Reunidos", do escritor e colunista da Folha Moacyr Scliar (Companhia das Letras), traz às livrarias na sexta-feira uma coleção de choques elétricos. Incluindo 20 inéditos, o livro organiza, em 12 temas, 30 anos de produção do autor.
Não são "contos completos": textos que não serviam à classificação temática ou foram considerados de menor qualidade por Scliar ficaram de fora. Entraram os de maior voltagem, na comparação do próprio autor, descrevendo um fenômeno fisiológico.
"Um músculo (de pata de rã, em geral) é isolado e estimulado eletricamente. Ele só se contrairá a partir de determinada voltagem, mas, quando o fizer, será com o total de sua força: tudo ou nada."
O uso da fisiologia como teoria literária não é casual: Scliar é médico. É também de sua história pessoal -a infância no bairro judeu do Bonfim (Porto Alegre)- que ele tira outra comparação:
"A parábola bíblica é o grande momento do conto", afirmou, em entrevista à Folha por telefone, na manhã de ontem. Essa díade, alta voltagem e história curta como uma parábola, formata a maior parte dos contos de Scliar.
Tradição religiosa e medicina perpassam todos os 12 temas que estruturam a reunião de contos. Mas, frequentemente, submetidas a inversões de perspectivas. Em "Diário de um Comedor de Lentilhas", por exemplo.
Scliar conta a história do primogênito bíblico, Esaú, que perdeu seus direitos de primogenitura em troca de um prato de leguminosas. A história é contada, no entanto, com base em um suposto diário de Esaú, encontrado por arqueólogos.
Em "As Pragas", outra inversão de foco: Scliar relata os sofrimentos impostos ao Egito para libertar o povo judeu, como descritos na Bíblia, mas da perspectiva de uma família de camponeses, atingida pelas pragas divinas.
Tão só a inversão já produz efeito irônico, cultivado por Scliar. A concisão e um clímax quase sempre abrigado no último parágrafo dão aos textos a estrutura mesmo de anedota, ainda que de conteúdo insólito ou trágico.
Em "Morto, Mas de Pau Duro", Gustavo convence Clara a seguidas relações sexuais alegando, falsidade, estar à beira da morte -câncer do pulmão, depois de fígado, então de pâncreas. Na quarta ameaça, a namorada não cede. E:
"De manhã, quando sai para o trabalho, encontra-o caído à porta. Morto, sim, mas de pau duro."
Scliar valoriza essa estrutura. "O grande detalhe do conto é o final", afirma, aproximando conto e poesia. "Poesia e conto correspondem a um impulso. O romance, ao contrário, é uma obra de artesanato. O romance vale pelo conjunto, o conto é o detalhe."
Fios de religião, de medicina, de humor e de sangue surgem com o estatuto de fatos cotidianos, como lambuzar um pão com manteiga. É o comentário da mulher de Karl Marx, transportado para o Rio Grande do Sul e interessado em enriquecer ("O Velho Marx"):
"A mulher de Marx um dia disse-lhe à mesa do café: 'Tinhas razão quando falavas que a história da humanidade é atravessada por um fio de sangue!', e serviu-se de manteiga."

Livro: Contos Reunidos de Moacyr Scliar, Companhia das Letras, 437 pág.
Quanto: R$ 35,00
Quando: sexta-feira nas livrarias

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