São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 1995
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"Os Fuzis" mistura monotonia e beleza

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Como grande parte da produção do Cinema Novo, o filme "Os Fuzis" (1964), de Ruy Guerra, é uma mistura de absoluta monotonia (ou pura chatice) com beleza e erudição. Isso posto, claro, para leigos, mortais que só se interessam por cinema que diverte, que prende a atenção.
"Os Fuzis" é o chamado clássico cinemanovista, que encerra em seu conteúdo o estudo ou a crítica da miséria brasileira por meio da figura do sertanejo espoliado; e que opta, no que se refere à forma, pela atmosfera estática herdada da nouvelle vague francesa.
O filme, construído em primeiros planos, expõe uma situação de agonia provocada pela seca nordestina. São rostos e expressões quase imperceptíveis retratando o ambiente de esterilidade e tensão.
Em 1963, chegava ao município de Milagres, sertão da Bahia, um destacamento de soldados, encarregado de proteger o único armazém de alimentos da cidade contra a ameaça de invasão por centenas de retirantes famintos.
"Se for preciso, varro a bala toda essa região", sentencia o comandante da milícia que pinga de suor no mormaço da caatinga, buscando em vão justificativas para a missão sem sentido de tirar a comida de quem tem fome.
A narrativa segue uma constante dramática, ascendendo aqui e ali por instantes críticos, de alguma ação. Casam-se bem a ausência de vento e de movimento. Fica assim manifesta a resignação do povo cujo "único serviço" era rezar.
Enquanto os soldados vigiam, o povo reza, faz cantorias e procissões, chamando chuva, ignorando a presença da milícia e seguindo os passos de uma espécie de Antonio Conselheiro ou padre Cícero local.
Na sua cegueira religiosa -não são gratuitos os depoimentos de dois cegos na história-, o sertanejo vai morrendo de fome enquanto venera um boi gordo em plena caatinga esturricada.
Os momentos de tensão instalam-se a cada tentativa de comunicação entre soldados e população local. São mundos isolados um do outro. Só há relação direta entre eles no caso amoroso de um soldado com uma moça da cidade.
Mesmo quando um sertanejo é morto por um tiro da milícia, paira a dúvida sobre se a mira teria sido em um cabrito ou no homem. Resta a imagem do homem-cabrito, sob o ponto de vista do soldado.
O mais expressivo contato entre os dois mundos é feito pelo único elemento estranho a ambos, o revolucionário, o caminhoneiro gaúcho de passagem pelo local, que se revolta contra tanta injustiça.
É exemplar a cena da caça dos soldados ao caminhoneiro, sob o latido de todos os cachorros do lugar, em que outra vez homem se confunde com bicho. Tudo muito bem encaixado e resolvido nesse filme de clima angustiante, de tomadas e fotografias precisas de uma agonia. Resta ter paciência para atravessar o mar de tédio.

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