São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Maquiavel ao gosto do Planalto

ROBERTO ROMANO

"A fala, sendo muitas vezes apenas uma palavra para o homem da alta política, torna-se um fato terrível para o soldado; o que um diz com ligeireza ou perfídia o outro escreve na poeira com seu sangue" (Vigny, "Memórias da Grandeza Militar"). Quando lemos as notícias sobre manifestações de oficiais em desagravo a um colega e lembramos a insatisfação que ronda as casernas, sentimos um calafrio.
Rumores de fanfarras, comícios, manifestos, se dirigidos pelos soldados contra o comandante máximo, indicam grave quebra disciplinar. A ruptura da hierarquia manifesta ausência de autoridade. O presidente da República iniciou, com sua atitude titubeante, os ataques ao seu próprio comando. Quem hesita não é obedecido em qualquer instituição, sobretudo no ofício das armas.
Alfred de Vigny é familiar aos soldados. Em seu panegírico, citado acima, o poeta discorre sobre o divórcio entre a nação e os quartéis. O exército moderno, diz ele, "pergunta-se ininterruptamente se é escravo ou rei do Estado: este corpo procura sua alma por toda parte e não a encontra". A comunhão brasileira amargou 25 anos de reinado castrense. Império despótico e tirânico, com resultados lastimáveis para a sociedade civil. É preciso demonstrar que no regime democrático o poder se exerce com rigor. Mas para isso é imperativo o respeito dos governantes pela palavra. Se percebem manipulações retóricas nos políticos, tanto os exércitos quanto a opinião pública desconfiam. Quem abusa da fala não guarda nenhum poder.
Após um governo corrupto e inepto -onde Collor fingia ler Norberto Bobbio- suportamos um presidente cheio de melindres e sem comando efetivo.
Em sua administração surgiram vários projetos desastrosos que hoje desestabilizam a República. Foi enorme a esperança depositada num presidente melhor preparado. O ressentimento, em caso de fracasso, terá o mesmo vigor.
"Há um mal que vejo debaixo do sol, erro que vem do soberano: a insensatez ocupando os mais altos postos" ("Eclesiastes", 10, 5-6). Dessa doutrina Tomás de Aquino deduz: "A desordem surge quando o chefe não foi escolhido por seu valor intelectual, mas porque ele usurpa o poder graças à sua força ou foi admitido a governar por algum motivo baixo" ("Summa contra gentiles"). Um presidente que parola sobre tudo, sobretudo no campo da cultura científica e humanística, afirmando coisas temerárias, perde autoridade.
O fato de ser um poderoso não autoriza ninguém a exibir pretensiosa filáucia. Com espanto lemos, no mesmo instante em que fatos gravíssimos ocorrem no país, como a quebra de hierarquia generalizada -no plano civil e militar-, as declarações do presidente sobre Maquiavel. Os seus partidários adoram aquele personagem.
Na campanha eleitoral, para legitimar alianças com oligarquias espertas, muita tolice foi dita sobre ele. Teóricos de variadas tendências confundiram as águas: o vulgar oportunismo, inerente ao senso comum sobre o florentino, foi aplicado às suas análises do mundo político. Atribuiu-se ao pobre Maquiavel teses que ele, "homem prudentíssimo", como diz Espinosa, encarou com desdém soberano.
A citação desastrada reduz o pensamento de Maquiavel ao maniqueísmo: bem e mal opostos sem matizes. Nada mais longe da letra e do espírito do "Príncipe". Muitas foram as leituras de Maquiavel feitas por donos do poder, desde Frederico, o Mentiroso (o mesmo que apresentou aos acadêmicos a questão ardilosa: "É útil mentir ao povo?"), até hoje. O dano situa-se em outras frases do nosso presidente: "Nós não fizemos maldade alguma, mas estamos tentando fazer o bem aos poucos". Isso provaria que Maquiavel, muitas vezes, entendeu a realidade "de uma forma superficial" (Folha, 29/11, pág. 1-12).
O jornalista não menciona a atitude dos presentes. Risos diante da anedota? Silêncio constrangido? Bajulação entusiasta? Temo que a última hipótese seja mais provável. Meu Deus, que vergonha! Perto dos escritos maquiavélicos, grandes obras empalidecem. O autor do "Príncipe" inspira, desde o seu tempo, os maiores pensadores do Ocidente.
Impossível ler Hobbes, Espinosa, Fichte, Hegel, Marx e sobretudo Max Weber, de um lado, e Gramsci, de outro, sem seus textos. Isso para não falar dos artistas que melhor retrataram a tragédia política, como Shakespeare. Ou estadistas guerreiros, como Napoleão.
O senhor presidente precisa ser cauteloso. Aduladores aplaudem as suas "boutades". Após os discursos de Stalin, baldes de água eram requeridos para esfriar as mãos dos lisonjeadores. Mas o Brasil possui gente cultivada e crítica. Palavras irrefletidas, entre os cérebros cosmopolitas, colocam qualquer intelectual em péssima situação.
Na Itália e na França, por exemplo, o efeito será fulminante. Nós, brasileiros, não merecemos esse castigo. Fernando Henrique deve ter cuidado com os cortesãos: quando o barco vira, eles pulam.
O poderoso descobre, sozinho, o amargor inteiro do saber bíblico: "Vanitas vanitatum". Seguindo a advertência de Vigny: cautela com as palavras... Os militares e a opinião pública detestam parolagem "teórica".
O "príncipe da sociologia" pensa realmente que seu trabalho lhe permite decretar a "superficialidade" de Maquiavel? Enquanto existir Estado e política, o teórico de Florença será importante. Todos os nossos governantes ocuparão um lugar no pé de página da história, junto com Frederico, Catarina 2ª e outros, cujo peito foi imprudentemente inflado, para tristeza de seus povos.

Texto Anterior: DISPUTA REAL; EMOÇÃO GARANTIDA; ALVO PREFERENCIAL; MOLUSCOS
Próximo Texto: Onde fica Sapopemba?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.